OCUPAÇÕES AMEAÇADAS – Lei pode despejar mais de 3 mil famílias que vivem às margens de rodovias.

Com a lei 22.419\2023, sancionada na última segunda-feira, 27, forças policiais tem aval do Estado para desocupar famílias.

Giovanna Campos**

O governador Ronaldo Caiado sancionou uma lei que institui a política estadual de segurança pública nas faixas de domínio e nas lindeiras das rodovias estaduais. Com a lei 22.419\2023, sancionada na última segunda-feira, 27, cerca de 3.318 famílias que vivem em acampamentos à beira de estrada em Goiás ficam ameaçadas de serem despejadas. A Defensoria Pública do Estado de Goiás (DPE-GO), por meio do Núcleo Especializado de Direitos Humanos (NUDH), apontou quatro pontos de inconstitucionalidade nessa lei.

“Grandes fazendeiros fazem tratoragem e isso não é considerado crime. A legislação foi um mecanismo para poder despejar essas pessoas que sonham em ter acesso à terra e, por isso, fazem os acampamentos. Uma parte considerável dessas famílias que vivem em acampamentos estão em situação de extrema miséria e simplesmente não têm para onde ir”, denunciou Saulo Reis, coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Goiás.

Atualmente, são 51 ocupações em faixas lindeiras no estado: 29 organizadas por sindicatos rurais ligados à Federação dos Trabalhadores Rurais na Agricultura familiar do Estado de Goiás (Fetaeg), 12 organizadas na Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar (Fetraf) e 10 ocupações ligadas ao Movimento Popular Terra Livre. Além disso, existem acampamentos que não estão organizados por nenhum movimento social.

Saulo explica que a lei é inconstitucional e não tem justificativa. “Não tem nenhum dado relevante que possa justificar isso, nem do ponto de vista da criminalidade, nem do ponto de vista da propriedade privada, visto que nos últimos quatro anos não aconteceu nenhuma ocupação em área privada, ou seja, em fazenda particular, mesmo que a terra descumpra a legislação e a função social da terra. O único caso foi na Fazenda São Lukas, em Hidrolândia”.

Segundo a Defensoria Pública do Estado de Goiás, o texto restringe direitos fundamentais de um conjunto de pessoas que já tem estes mesmos direitos não garantidos pelo próprio Estado.

“De forma equivocada, o Estado de Goiás enxerga, como solução para evitar ocupações, a criminalização dos ocupantes e dos movimentos sociais, envidando forças nas consequências, desconsiderando causas e possíveis soluções alternativas. A lei desconsidera que os ocupantes, tendo posse pacífica das áreas por meses e anos, não podem ser submetidos à violência estatal na retomada de tais territórios”, disse a DPE.

A matéria desrespeita ainda o trabalho realizado pela Comissão de Conflitos Fundiários instituída pelo Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO), que tem o propósito de encontrar soluções pacíficas para diversos conflitos possessórios de natureza coletiva em curso no estado.

Além disso, a legislação ofende o princípio da “vedação do retrocesso social”, implícito na Constituição Federal de 1988. Este princípio obriga que o Estado atue na preservação do acesso a conquistas e direitos, buscando melhorias nas condições de vida da população, reduzindo desigualdades sociais e construindo uma sociedade mais justa. Sendo assim, qualquer proposta legislativa no sentido de suprimir garantias indispensáveis à efetivação da dignidade da pessoa humana caracteriza-se como inconstitucional.

Muitas pessoas vivem do comérdio às margens das rodovias. | Foto: Divulgação

O que diz a legislação

A Lei 22.419\2023 busca unificar medidas de segurança nas “faixas lindeiras e de domínio”, que compreendem área de 40 metros nas beiras de estradas, tanto estaduais quanto federais delegadas ao governo estadual. O texto assinado por Caiado pretende “instrumentalizar os meios necessários para coibir situações de ocupação ilícita” e reúne ações elencadas pela Secretaria de Segurança Pública (SSP), Casa Civil, Agência Goiana de Infraestrutura (Goinfra) e Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad).

Com isso, a Polícia Militar (PM), o Corpo de Bombeiros Militar (CBM) e a Delegacia– Geral da Polícia Civil (DGPC) têm o aval do Estado para despejar essas famílias em situação de vulnerabilidade. “Em caso de ocupação ilícita da faixa de domínio, a autoridade administrativa que primeiro tomar ciência do fato deverá providenciar comunicação imediata às forças policiais com atribuição para intervenção e proteção do patrimônio”, diz a lei.

Com a nova lei, o Governo de Goiás vai agir contra os ocupantes da seguinte forma:

I – adotar medidas de desforço imediato para garantir a dominialidade do bem público;

II – lavrar autuação administrativa nos termos da Lei estadual nº 14.408, de 2003;

III – realizar autuação por infração ambiental identificada pela SEMAD, nos termos das Leis estaduais nº 18.102 e nº 18.104, ambas de 18 de julho de 2013;

IV – identificar os invasores e cruzar os dados para verificar quais deles são beneficiários de programas sociais do Governo Estadual;

V – promover medidas judiciais para a responsabilização civil dos invasores;

VI – conduzir coercitivamente os invasores para a oitiva deles pelas autoridades policiais;

VII – realizar busca e apreensão de materiais usados para invadir as faixas de domínio;

VIII – requerer o afastamento de sigilos, nos termos da lei, bem como busca domiciliar, quando forem necessários para a efetivação da política pública; e

IX – promover o indiciamento dos invasores por crimes porventura cometidos na ocorrência do ilícito

Goiás é líder em conflitos agrários

Dados parciais registrados no primeiro semestre de 2023 pelo Centro de Documentação Dom Tomás Balduino, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), apontam para grande aumento no número de ocorrências de conflitos no campo no estado de Goiás.

De janeiro a junho deste ano, foram 85 ocorrências de conflitos por terra registradas, tendo como principal causador da violência contra a ocupação e a posse o governo do estado. No mesmo período foi realizado apenas um registro de ocupação de terra, referentes a uma área que já pertence ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Goiás foi, no primeiro semestre deste ano, o estado com maior número de ocorrências de conflito por terra e território em todo o Brasil. O número é quase 4 vezes maior do que o registrado no mesmo período do ano passado, quando foram registradas 22 ocorrências, um aumento de mais de 386% no número de registros. A categoria Governo estadual aparece como responsável em 55,29% registros, seguida da categoria Fazendeiro, que aparece como causadora em 24,70% das ocorrências, e Empresário, categoria apontada como responsável por 7,05% das ocorrências (6 ocorrências).

“A polícia só cumpre ordem dos seus superiores. E quem é o chefe geral da polícia de Goiás é o governador. Então, com determinação do governo, a polícia tem a agido fora da lei, sem ordem judicial com a alegação de um flagrante que, na verdade, não existe. O que a gente tem visto muito em Goiás é o aumento das milícias e o aumento da violência dessas milícias, que estão agindo contra famílias acampadas ou assentadas da reforma agrária e ainda contam com a ação violenta do Governo de Goiás contra os acampamentos”, explicou Saulo Reis.

Número de ocorrências de violência contra a ocupação e a posse em Goiás – Série Histórica 2014-2023. | Fonte: Centro de Documentação (Cedoc) CPT Nacional

Além dos conflitos por terra e território, que representam 87,62% do total dos registros, foram registradas 6 ocorrências de conflitos pela água e 6 ocorrências de trabalho rural análogo à escravidão. Ao todo, foram registradas 97 ocorrências de conflitos no campo no primeiro semestre de 2023 no estado de Goiás, um número maior do que o total de registros realizados em todo o ano de 2022, que somaram ao todo 78 ocorrências.

De acordo com dados da Campanha Nacional Contra o Trabalho Escravo, foram 373 trabalhadores resgatados do trabalho escravo rural em Goiás no primeiro semestre de 2023. A maior parte destas pessoas foram resgatadas em grandes fazendas e empresas do agronegócio. O número mostra um aumento significativo em relação ao volume de trabalhadores resgatados no último ano. Em todo o ano de 2022, Goiás registrou 15 ocorrências de trabalho escravo rural, com um total de 258 pessoas resgatadas. Em 2021, pico da última série histórica de 10 anos, foram 304 trabalhadores resgatados do trabalho escravo rural.

***FONTE; Jornal Opção

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