Os impactos da violência contra crianças

Agressões físicas comprometem a formação da personalidade e provocam danos à saúde mental da criança

Violência: Cada criança tem uma forma natural de lidar com as adversidades que o mundo impõe

LÍVIA MACHADO

Desde o dia 13 de maio, a procuradora de Justiça aposentada Vera Lucia de Sant’Anna Gomes está presa no complexo penitenciário de Bangu, zona norte do Rio de Janeiro, acusada de torturar uma menina de dois anos que pretendia adotar e estava sob sua guarda provisória.

A Vara de Infância, Juventude e Idoso da Comarca do Rio de Janeiro acolheu um dos pedidos feitos pelo Ministério Público (MP) do Estado na ação civil pública contra a procuradora. O órgão pede que 10% do rendimento mensal de Vera Lucia sejam destinados ao tratamento psicológico até que a criança complete 18 anos de idade.

A ação sustenta que o tratamento seja iniciado imediatamente para atenuar o sofrimento e dar oportunidade da menina crescer sem traumas profundos. A indenização proposta pelo MP, na opinião de especialistas, é apenas o primeiro passo para ajudá-la a superar o trauma, mas não trata um problema maior: a falta de referências positivas na vida da criança.

Para o psicanalista do Hospital Nove de Julho de São Paulo, Catulo César Barros, a terapia é paliativa, não estabelece a relação de vínculo e não oferece o afeto necessário para o desenvolvimento da criança. “Um especialista poderá ajudar a superar a agressão física, perder o medo e criar uma relação de confiança, mas em nada resolverá se essa menina não for inserida em uma família que realmente a ame, cuide dela. Se apenas o tratamento resolvesse os problemas da infância, a Fundação Casa (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente), antiga FEBEM, funcionaria muito bem”, assevera.

Catulo explica que a criança pode ser imatura, mas é uma esponja emocional. Na visão do médico, essa capacidade dá a ela um entendimento agudo do que ocorre a sua volta e provoca desdobramentos na fase adulta.

“Se estiver inserida em um ambiente de carinho e acolhimento, a criança tem totais condições de entender que uma palmada não é agressão, é repressão a uma atitude errada, correção. Agora, quando vive em uma realidade crua, os danos de uma agressão física desmedida podem desenvolver um adulto violento, depressivo e medroso.”

A coordenadora do Programa de Proteção à Infância do Unicef no Brasil, Helena Oliveira, evita estabelecer relações entre o trauma e a formação da personalidade da criança. “Não se pode afirmar que os maus tratos serão diretamente responsáveis por formar um adulto violento, agressivo. Cada criança tem uma forma natural de lidar com as adversidades que o mundo impõe. É claro que o trauma tem um impacto profundo na saúde mental, mas não a faz reagir da mesma maneira com a qual foi tratada.”

O Unicef acredita no tratamento e acompanhamento das necessidades reais, dentro do contexto social que a criança está inserida. “Superar os problemas, encarar a violência são essenciais para a formação do caráter.”

Helena pondera que a violência doméstica está diretamente relacionada a uma questão cultural. Para ela, existe uma crença antiga não apenas no Brasil, de que para educar é preciso repreender com punições corporais. “A supremacia do adulto dá a ele o direito de educar da forma que convém. Para impor suas leis, a agressão torna-se uma forma de ensino, que é totalmente equivocada.”

Uma educação bem feita, criteriosa exige que o adulto se coloque diante da criança, se abaixe para escutá-la, compreender seus dilemas e desejos. Não implica em concordar ou permitir, apenas ouvir. “Esse é o papel do terapeuta no tratamento dos traumas e é também a premissa básica de uma relação saudável entre pais e filhos”, defende a psicóloga do ambulatório de pediatria social do Hospital paulista Sírio Libanês, Harumi Kaihami.

A especialista explica que os dois primeiros anos de vida estabelecem a relação entre a criança e os pais. Nessa época, segundo ela, o afeto, o carinho e até maneira como a criança é carregada durante a amamentação, são determinantes. “A referência do amor dá segurança. As marcas da agressão física passam, mas rejeição ganha contornos maiores no futuro.”

Segundo ela, os impactos são variáveis e dependem da personalidade da criança, da forma como ela se comporta. “A insistência na violência pode gerar um adulto agressivo. Repetimos a forma como fomos criados. O impacto inicial da agressão é generalizar a figura do agressor. O adulto fica estigmatizado, ela não sabe em quem confiar, que vai tratá-la bem, quem pode agredi-la.”

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