O sabor amargo da opressão em O açúcar, de Ferreira Gullar

Larissa Cardoso Beltrão – 

Colhedores de café, de Cândido Portinari (1934)
Colhedores de café, de Cândido Portinari (1934)

Desde as primeiras civilizações formadas, observamos a transformação da natureza por meio do trabalho do homem o qual gerou mudanças tanto nas pessoas, quanto nos locais onde viveram. Ao longo do tempo, esse trabalho fora organizado de modos diferentes, de acordo com os povos e suas ideologias. Por causa disso, os sistemas de produção foram diversos, por exemplo, a escravidão, o feudalismo e o capitalismo. Assim, além da natureza, podemos afirmar que o trabalho modifica também o homem e renova as suas percepções de si mesmo e do mundo.
No sistema escravista, o amo era o dono das terras, dos meios de produção e também das pessoas que trabalhavam para ele, servindo em sua casa, fazendo serviços domésticos, cuidando da terra, entre outras atividades. Conforme a ideologia dos escravocratas, a vida dos escravos só tinha sentido para servir seu amo. Para este, os braços humanos eram instrumentos que produziriam o bem estar para si. Em troca, os escravos recebiam comida e local onde viverem, tinham horas mínimas de descanso apenas para recuperarem as forças e retomarem suas funções. Claramente, percebemos a sobreposição de um sobre o outro, surgindo, assim, uma divisão entre o amo e o escravo.
O capitalismo, diferentemente desses outros sistemas, provoca uma relação explícita de compra e venda. Ou seja, há o dominador na pessoa do capitalista, dono das fábricas e dos meios de produção, e o dominado, o trabalhador. A dominação exercida não se faz a mesma de um sistema escravocrata e feudal, porque o dominado se vende, isto é, vende sua força de trabalho por salário.
Em O capital – resumo literal (s/d), Luiz Bicalho apresenta Karl Marx que comenta todo esse processo e sugere a decomposição do trabalho em três partes para que se efetive. Segundo este autor, há, nessa decomposição, a atividade pessoal do trabalhador, o objeto sobre o qual se atua e o meio através do qual age. Essa tríade provoca a reflexão de que para que seja realizada a atividade, alguns fatores devem ser organizadamente preparados: o objeto, nessa perspectiva, é a matéria natural em modificação, a qual está entre quem modifica e como modifica, isto é, o meio. Assim, com a junção desses fatores – objeto e meio – temos os meios de produção, possibilitando um processo de trabalho em que visa à utilização da força para alcançar algum fim.
Portanto, os proprietários têm os meios de produção, isto é, a matéria prima e os instrumentos e também a força de trabalho. Esses dois elementos são chave para que haja produção de mercadoria. Em função disso, aqueles que não os possuem – o trabalhadores – se tornam também propriedade, pois necessitam do salário para sobreviver. Podemos dizer que os capitalistas detêm não apenas os meios de produção, mas também aqueles que produzem.
Partindo, mais uma vez, da premissa de que a obra literária é, em alguns casos, um reflexo da visão social e política do artista, uma vez que nela está refletida a visão de mundo do autor, que emerge a partir de sua ideologia, como podemos verificar neste poema em que colocam-se em cena os homens de seu tempo, destacamos a postura de Ferreira Gullar que, diante do cenário de fragmentação do homem moderno, assume seu engajamento poético e traça um caminho de críticas e reflexões. Sendo ele um importante representante da função social da Literatura, como podemos verificar no poema “O açúcar”, publicado em Dentro da noite veloz(1975), para analisarmos e fazermos um levantamento de alguns aspectos coisificantes em seus versos:
O branco açúcar que adoçará meu café
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre. (GULLAR, 1975, p. 165).
No excerto acima, observamos, pois, que o poeta aparentemente imerso em uma realidade, por ora distante, tem uma súbita tomada de consciência. O poema em questão foi publicado em 1975, seus versos representam uma tentativa, por parte do poeta, de expressar sua indignação face à situação socioeconômica do Brasil e do mundo. Consciente de que o produto utilizado para adoçar o café não surgiu por milagre, tampouco o fez, ele descreve o seu valor:

Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça, água
na pele, flor
que se dissolve na boca. Mas este açúcar
não foi feito por mim.
Este açúcar veio
da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira, dono da mercearia. (GULLAR, 1975, p. 44)

O sujeito lírico reafirma que o açúcar não foi feito por ele, nem por quem o vende, isto é, o Oliveira, dono da mercearia. Assim, retoma todo o processo de fabricação, começando pela venda, para que seja feita uma reflexão sobre o açúcar que consomem. Este produto, como visto, é comparado aos grandes prazeres da vida, de modo que torna-se claramente saboreado. O processo se esclarece nos versos seguintes:
Este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tampouco o fez o dono da usina.
Este açúcar era cana
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.
Em lugares distantes, onde não há hospital
nem escola,
homens que não sabem ler e morrem de fome
aos 27 anos
plantaram e colheram a cana
que viraria açúcar. (GULLAR, 1975, p. 44-5)

O poeta permite ao leitor conhecer a origem do produto e incita a necessidade de observar a vida daqueles que realmente possibilitaram a chegada do açúcar às mesas. Os plantadores de cana são homens indigentes, que moram em locais distantes, não tem acesso à educação, não podem se alimentar devidamente e, por isso, morrem muito novos, sem terem, de fato, o direito à vida.
Além disso, esse posicionamento remete-nos ao processo de coisificação do homem, na medida em que, enquanto leitores, vamos descobrindo que o material que adoça a vida de um pequeno grupo de pessoas mais favorecidas, é fruto da amargura vivenciada por homens que não têm acesso aos bens que Antônio Candido (2000, p.173) denominou fundamentais.
Ademais, o poeta, a partir das antíteses sugeridas pelo contraste entre branco e escuro, doce e amargo, revela a contradição entre a vida simples e cruel nos canaviais e a vida luxuosa e confortável no bairro de Ipanema:

Em usinas escuras,
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema. (GULLAR, 1975, p. 45)

Nesse contexto, a postura consciente assumida pelo poeta Gullar, revela-nos sua inquietude em relação à condição de vida dos produtores de açúcar condicionados à opressão e, portanto, sendo coisificados. Como visto, o açúcar, consumido em Ipanema, bairro nobre do Rio de Janeiro, veio de lugares distantes e foi produzido por homens valentes, cujo papel se limita ao de meros braços para se produzir e servir aos moradores da classe alta.
Ao longo desta pesquisa, procuramos expor o processo de coisificação do homem no contexto de ascensão do sistema capitalista que modificou os valores da sociedade, no Brasil e no mundo, e tornou os trabalhadores meros objetos expostos à venda.
Sistema este que provocou a divisão do trabalho em várias etapas e, então, impôs aos homens e mulheres a fragmentação de suas atividades, visto que já não tinham mais controle sobre o trabalho completo, apenas sobre sua função isolada. Desse modo, notamos que inconscientemente os operários também se fragmentaram e perderam sua totalidade.
Além disso, foram também submetidos a trabalhos árduos, estando por longas horas nas fábricas em condições precárias, e a sobrevivência desses trabalhadores também era um problema, pois seu salário era bem pequeno e injusto quando comparado aos lucros das grandes fábricas e ao valor necessário para se viver bem.
A partir das análises dos poemas selecionados como corpus deste trabalho, procuramos enfatizar que essa arte possibilita o resgate da totalidade do ser fragmentado, uma vez que pressupõe uma relação de diálogo entre o escritor, a obra e o leitor. No processo de escrita, o escritor engajado projeta desvendamentos das imposições do capitalismo, de modo a construir o seu texto objetivando provocar no leitor alguma reação diante da denúncia feita. O leitor, por sua vez, deve assumir uma postura ativa para desvendar a crítica permitindo que a obra literária se concretize, haja vista que isso só ocorre na leitura.
Assim, a literatura possibilita ao escritor e ao leitor conhecerem o mundo, se responsabilizem por ele e tornarem-se pessoas mais conscientes e aptas a questionar e, consequentemente, a não aceitar certas ações dominantes.
Por meio da arte da palavra, o homem coisificado pode converter o seu olhar e tornar-se menos alienado às condições às quais foi submetido. Embora o sistema capitalista permaneça ditando suas regras e impondo seu modo de produção de mercadoria e organização humana, os trabalhadores, vistos como coisas, objetos para manuseio, a partir da leitura, não estarão alheios a isso.
REFERÊNCIAS
GULLAR, Ferreira. O açúcar. In: ______. Dentro da noite veloz. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. p. 44-5.
LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe: estudos de dialética marxista. Tradução de Telma Costa. 2. ed. Rio de Janeiro: Elfos, 1989.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/manifestocomunista.pdf. Acesso em: Agosto de 2013.
SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Ática, 2004.

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