A celebração da mesmice

Folheio quatro jornais ao longo do dia. Desnecessário dizer que todos eles são publicados no eixo Rio-São Paulo. Assisto a três telejornais diariamente e observo as notícias e temas que são semanalmente publicados em Veja, CartaCapital, Época e IstoÉ.

Nos telejornais impressiona a mesmice que nos é servida em embalagem de notícia. Nos meios impressos se destaca a uniformidade de temas e a forma desabrida como enfoca questões de governo, questões de Estado e questões que ficam naquela zona cinzenta para atender a interesses meramente político-partidários.  Os jornais parecem jejunos de furos e já se contentam com o fato de que furo mesmo é coisa da internet. No entretempo e tendo que produzir uma edição a cada 24 horas, resta aos jornais a missão insossa e inodora de cumprir tabela, atender aos acordos firmados em seu departamento comercial e repercutir uns aos outros, mudando o lide, mostrando mais tempo para elaborar a manchete da capa. Foi o caso das edições de sexta-feira (21/5): o Estado de S.Paulo optou por 32 caracteres com espaço e foi de “Brasil já é grau de investimento”, enquanto seu concorrente direto, a Folha de S.Paulo, decidiu por 31 caracteres com espaço e foi de “Brasil vira investimento seguro”.  No fundo é o mesmo rame-rame. Com um pouco mais de esforço conseguirão estampar em sua primeira página as mesmas palavras, a mesmíssima quantidade de caracteres e a mesma impressão de que os jornais, como na música de Chico Buarque, já vão tarde. Deixam de praticar um jornalismo que cative o interesse do leitor, que seduza seus olhos, que sacie sua fome por inteligência impressa. E percorrem o caminho mais fácil, seguro e também mais incerto, já que é resulta no afastamento de leitores e os conduz, de imediato, ao primeiro terminal onde se materializa a internet. Termina sendo, infelizmente, o ofício nada santo de repercutir o óbvio.

EXEMPLOS IRRETOCÁVEIS

O viés ideológico perpassa três das irmãs semanais e o mercadológico ou comercial domina integralmente a quarta semanal. No fundo, as semanais parecem estar em cruzada diuturna para catequizar seus leitores. Mas aparentam claro desinteresse por novas conversões a seu ideário – no mínimo, contentam-se em pregar aos convertidos de longa data. E quando chega a este ponto podemos tão somente presenciar em intervalos curtos matérias pretensamente jornalísticas, textos com alto teor opinativo, argumentos esgrimidos unicamente pelo viés da ideologia defendida. Cadê o jornalismo?

No entanto existiu um tempo em que os editores sabiam a diferença entre fait-divers e calhau. O primeiro se usava para dizer de notícia que desperta interesse do leitor por implicar que o curso natural dos acontecimentos estava sendo rompido de maneira insólita ou extraordinária. O segundo termo evocava na gente desinteresse, era o tal jornalismo anêmico, e se dizia da pororoca diária nas redações em que se encontravam notícia, artigo, matéria de menor importância ou anúncio de permuta que, na falta de coisa melhor, se usava para encher espaços vazios (buracos) por falta de material editorial ou, então, erro de cálculo de diagramação.

O fait-diver de hoje seria notícia dando conta que Barack Obama anunciou a desistência do pedido dos Estados Unidos para que o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovasse sanções mais duras e abrangentes contra o recalcitrante país dos aiatolás, o Irã. Outro fait-diver seria publicar matéria com José se retirando da corrida pelo Palácio do Planalto… e informando que ele concorreria novamente ao governo do estado de São Paulo. Ainda mais fait-diver poderiam ser reportagens da revista Veja com os títulos: (1) “As veias abertas da América Latina, de Eduardo Galeano, precisa ser adotado em escolas de todo o país”; (2) “O Brasil não seria o Brasil sem a contribuição decisiva dos índios e dos negros”, (3) “O capitalismo deixa de ser panacéia para todos os nossos males”; e, (4) “Mercedes Sosa foi mais que a cantora de bumbo argentina”.

Para explicar melhor o que vem a ser o calhau seria… publicar, em maio de 2010, resenha com 2.800 caracteres sem espaço, com o objetivo claro e inequívoco de celebrar e glorificar o livro Aarte da política – Ahistória que vivi, de Fernando Henrique Cardoso, lançado pela Editora Civilização Brasileira, em 2006. Pois bem, não precisamos gastar tempo com exemplos para calhau: basta pegar a edição de domingo de algum dos nossos jornalões. Não faltarão irretocáveis exemplos.

OVERDOSE DE TECNOLOGIA

Há pouco tempo fiz palestra de abertura da Semana de Jornalismo na Universidade Regional de Blumenau. Um aluno pediu que dissesse três coisas que eu considerava abomináveis na profissão. Não me fiz de rogado e respondi três palavras com a terceira letra do alfabeto: calhau, cozinha e cascata. O aluno franziu a testa como se eu estivesse ressuscitando língua morta. “Cozinha? O que é calhau? E cascata é a mesma cascata do senso comum?”

Aos que não sabem por serem jornalistas em potencial ou jejunos de redação, esclareço que “cozinha” no jargão jornalístico é todo o trabalho de reescrever, adaptar, atualizar ou condensar matéria do próprio veículo ou, infelizmente, de outra publicação – e, muito embora, a prática não seja recomendável, tem livre curso em muitas de nossas redações. Também usamos a expressão “Gilette-press”, expressão que indica pejorativamente o hábito de produzir notícias à base de releases ou de matérias prontas, extraídas de outras publicações. Utiliza- se “cascata” para uma redação que não se garante – redação inconsistente, pobre de conteúdo e loooonga.

Acreditem se quiser: houve um tempo em que palavras como capitular, calhau, copidesque, deadline, gralha, cascata, enxugar, barriga, cozinha, fio data e boneco davam um colorido à vida das redações e nesse ambiente nasciam, cresciam e morriam os grandes jornalistas, aqueles que tornavam o impossível possível para oferecer aos leitores doses maciças de talento e, com isso, manter em seus rostos a sensação de genuína alegria que se tem apenas quando se lê a última linha de um texto realmente bom, muito bom.

Enquanto encontro um jeito para terminar este texto, sei que engenhocas realmente prodigiosas do tamanho de uma noz captam, processam e emitem, na velocidade da luz, mensagens que há apenas 50 anos necessitariam de várias toneladas de maquinaria para fazer o mesmo. São os prodígios da tecnologia de ponta nestes tempos além dos tempos pós-modernos: nossos contemporâneos mais bem posicionados na pirâmide social midiática podem dosar até mesmo o tempo de suas férias atendendo ao telefone celular, recebendo e enviando e-mail, interagindo em redes sociais virtuais, respondendo ao bipe, fazendo compras e vendas por computador e preenchendo o vazio de suas vidas com filmes em 3D, videogames possantes e a televisão portátil onde se vê imagem e som tratando de nossos interesses culturais, artísticos, profissionais.

O paradoxo que temos diante de nós é saber que com tanta tecnologia na floresta da comunicação (e sempre ao alcance dos nossos sentidos), e com tantos milhares de possibilidades para nos informar, não obstante tudo isso temos apenas que escolher entre o mesmo e o mesmo.

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