MARCHA DA MACONHA – Participação de crianças e adolescentes durante manifestação provoca polêmica em Alto Paraíso de Goiás.
Pelas redes sociais, moradores e autoridades se mostraram incomodados com a presença de menores de idade na Marcha pela descriminalização e legalização da maconha. Em nota enviada ao Jornal O VETOR, os organizadores afirmam estar dentro da legalidade imposta pelo Estado.
Roberto Naborfazan**
A marcha da maconha tem uma história marcada por uma luta constante pela descriminalização e legalização da maconha. São manifestações públicas e pacíficas onde os participantes se reúnem para reivindicar mudanças nas políticas de drogas.
Há registros históricos que contam que a primeira formação da marcha foi em 1972 na cidade de Amsterdã, na Holanda. Há também menções que a origem do movimento foi em 1994 na cidade de Nova York, nos EUA.
Fato é que desde que começou, diversos países pelo mundo passaram a aderir e a organizar o movimento em cidades espalhadas pelo globo, entre eles: África do Sul, Austrália, Canadá, Cabo Verde, Chile, Estados Unidos, Equador, Filipinas, França, Itália, Jamaica, Japão, Lituânia, México, Rússia, Turquia, Uruguai, Vietnã e muitos outros.
De acordo com a Associação Terapêutica Sou Cannabis, no Brasil, a primeira Marcha da Maconha aconteceu em 2002 na cidade do Rio de Janeiro. A iniciativa dos cariocas mobilizou a formação de outros grupos pelo Brasil afora em diversas outras cidades.
Em junho de 2011, m decisão unânime (8 votos), o Supremo Tribunal Federal (STF) liberou a realização dos eventos chamados Marcha da Maconha, que reúnem manifestantes favoráveis à descriminalização da droga. Para os ministros, os direitos constitucionais de reunião e de livre expressão do pensamento garantem a realização dessas marchas. Muitos ressaltaram que a liberdade de expressão e de manifestação somente pode ser proibida quando for dirigida a incitar ou provocar ações ilegais e iminentes.
Pela decisão, tomada no julgamento de ação (ADPF 187) ajuizada pela Procuradoria-Geral da República (PGR), o artigo 287 do Código Penal deve ser interpretado conforme a Constituição de forma a não impedir manifestações públicas em defesa da legalização de drogas. O dispositivo tipifica como crime fazer apologia de “fato criminoso” ou de “autor do crime”.
O voto do decano da Corte, ministro Celso de Mello, foi seguido integralmente pelos colegas. Segundo ele, a marcha da maconha é um movimento social espontâneo que reivindica, por meio da livre manifestação do pensamento, a possibilidade da discussão democrática do modelo proibicionista (do consumo de drogas) e dos efeitos que (esse modelo) produziu em termos de incremento da violência.
Na época, Celso de Mello explicou que a mera proposta de descriminalização de determinado ilícito penal não se confunde com o ato de incitação à prática do delito nem com o de apologia de fato criminoso.
No julgamento, mesmo acompanhando o relator, o ministro Luiz Fux achou necessário estabelecer parâmetros para a realização das manifestações. Fux ressaltou que elas devem ser pacíficas, sem uso de armas e incitação à violência. Também devem ser previamente noticiadas às autoridades públicas, inclusive com informações como data, horário, local e objetivo do evento.
Ele acrescentou ser imperioso que não haja incitação, incentivo ou estímulo ao consumo de entorpecentes durante a marcha e deixou expresso que não pode haver consumo de entorpecentes durante o evento.
Por fim, ressaltou que crianças e adolescentes não podem ser engajados nesses eventos. Se a Constituição cuidou de prever a proteção dos menores dependentes químicos, é corolário dessa previsão que se vislumbre um propósito constitucional de evitar tanto quanto possível o contato das crianças e dos adolescentes com a droga e com o risco eventual de uma dependência, afirmou.
Nesse ponto, o ministro Celso de Mello observou que o dispositivo legal que estabelece o dever dos pais em relação a seus filhos menores é uma regra que se impõe por si mesma, por sua própria autoridade. Ele acrescentou que demais restrições impostas a eventos como a marcha da maconha estão determinados na própria Constituição.
Alto Paraíso de Goiás não é uma cidade de drogados
Conhecido nacional e internacionalmente por suas belezas naturais, o município de Alto Paraíso de Goiás, na Chapada dos Veadeiros, região nordeste de Goiás, carrega desde o final do século passado o estigma de ser um município tolerante ao consumo de drogas ilícitas, com seus moradores, não raro, serem recebidos em outras localidades com sorrisos sarcásticos e piadinhas sobre drogas e drogados.
São diversas as narrativas de pessoas que afirmam terem ouvido coisas como “você é de Alto Paraíso de Goiás? O povo lá é doidão né?” ou “E aí, é verdade que a droga é liberada lá na sua cidade mesmo?” entre outras frases pejorativas e discriminatórias.
O fato é que, no inicio dos anos 2000, quando os chamados “riquinhos de Brasília” descobriram o caminho para os primeiros atrativos naturais no município, ainda com difícil acesso, passaram a fazer uma espécie de roteiro semanal para Alto Paraíso de Goiás, onde usavam todos os tipos de drogas nas até então escondidas cachoeiras.
Esse Turismo da droga daquela época, repudiado pela comunidade nativa, acabou criando essa impressão de que em Alto Paraíso de Goiás tudo é permitido.
A população nativa de Alto Paraíso de Goiás não é e nunca foi formada por drogados, mas, como na maioria das cidades turísticas brasileiras, recebe entre seus visitantes usuários de drogas, que, quando excedem os limites da Lei, são enquadrados e responsabilizados.
A Marcha da Maconha em Alto Paraíso de Goiás
Pelo segundo ano consecutivo aconteceu no município a manifestação pela descriminalização e legalização da maconha para fins medicinais e recreativos em Alto Paraíso de Goiás.
Em 2022 a Marcha da Maconha, como ficou popularmente conhecida, aconteceu no distrito de São Jorge, e este ano na sede do município. Com maior visibilidade, a manifestação deste ano aconteceu no dia 12 de julho, percorrendo a principal avenida da cidade.
Já durante a Marcha pela cidade começaram a surgir em redes sociais postagens cobrando das autoridades e do Conselho Tutelar posicionamentos sobre a presença ostensiva de crianças e adolescentes, inclusive fazendo uso de megafones, gritando palavras de ordem, entre adultos que, a pretexto de manifestação, faziam o uso da maconha.
Assista abaixo aos vídeos da Marcha da Maconha em Alto Paraíso de Goiás (Imagens reproduzidas de redes sociais de pessoas da comunidade e do Instagram marchadamaconhaveadeiros)
A polêmica se estendeu, chegando a Câmara de vereadores, que, através de parte de sues integrantes, oficiaram a presidente do Conselho Tutelar do município, com cópias para o Ministério Público Estadual, Conselho Municipal de Segurança Pública, Comando local da Polícia Militar e Delegado Regional da Polícia Civil. Leia abaixo a íntegra do ofício.
Em suas redes sociais, o prefeito de Alto Paraíso de Goiás, Marcus Adilson Rinco, (Clique no nome e assista) se disse indignado com a realização da marcha da maconha no município. Que a maconha medicinal carece de comprovação cientifica e pode vir a ser legalizado, mas que o uso da maconha não é liberado em Alto Paraíso de Goiás e que a sua gestão é totalmente contra o uso da maconha.
O comandante da 14ª Companhia Independente da Polícia Militar (São João d’Aliança/Alto Paraíso de Goiás), Capitão Alexander Jorge Júnior, disse ao Jornal O VETOR que, durante a Marcha, a Polícia Militar fez a organização do trânsito para que houvesse a manifestação, que acontece em vários cidades brasileiras e que contava com autorização da prefeitura, com acompanhamento de secretários municipais.
O comandante relatou ainda que durante a manifestação, quando os Policiais Militares se depararam com o uso de entorpecentes, foram realizados três Termos Circunstanciados de Ocorrência (TCOs), coibindo o uso de drogas ilegais em vias públicas. “Como força de segurança pública, somos contra e combatemos qualquer tipo de crimes. Quanto a participação de crianças e adolescentes, quando formos acionados seja Ministério Público, seja pela Justiça, vamos atuar no apoio as autoridades. Se essa participação for evidenciada como crime, se esse for o entendimento das autoridades, faremos as prisões e as ações determinadas pela justiça”, frisou o Capitão Alexander Jorge Júnior.
O Jornal O VETOR procurou a Articulação de Organizações da Sociedade Civil da Marcha da Maconha da Chapada dos Veadeiros, que emitiu a seguinte nota:
A Articulação de Organizações da Sociedade Civil da Marcha da Maconha da Chapada dos Veadeiros vem a público prestar alguns importantes esclarecimentos:
1 – A Marcha da Maconha foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, em 2011, como uma “manifestação legítima, por cidadãos da república, de duas liberdades individuais revestidas de caráter fundamental: o direito de reunião (liberdade-meio) e o direito à livre expressão do pensamento (liberdade-fim) – a liberdade de reunião como pré-condição necessária à ativa participação dos cidadãos no processo político e no de tomada de decisões no âmbito do aparelho de estado – consequente legitimidade, sob perspectiva estritamente constitucional, de assembleias, reuniões, marchas, passeatas ou encontros coletivos realizados em espaços públicos (ou privados) com o objetivo de obter apoio para oferecimento de projetos de lei, de iniciativa popular, de criticar modelos normativos em vigor, de exercer o direito de petição e de promover atos de proselitismo em favor das posições sustentadas pelos manifestantes e participantes da reunião – estrutura constitucional do direito fundamental de reunião pacífica e oponibilidade de seu exercício ao poder público e aos seus agentes – vinculação de caráter instrumental” (parte inicial do voto do Ministro Celso Mello, relator da matéria);
2 – Durante a votação, o Ministro Luís Fux defendeu a restrição de acesso às marchas a menores de idade. A decisão do Supremo Tribunal Federal, no entanto, não colocou qualquer restrição à participação de menores de idade, desde que acompanhados de pais ou responsáveis;
3 – As marchas da maconha, realizadas em todo o país desde a primeira década do século XXI, combatem o proibicionismo que afeta uma planta, a cannabis sativa, nome científico da Maconha, como é popularmente conhecida no Brasil. A Maconha possui diversas propriedades medicinais, além de usos diferenciados como alimentação, bioconstrução, fibra, cosméticos, entre outros;
4 – Esta foi a segunda marcha da maconha realizada em Alto Paraíso de Goiás. A primeira, em 2022, aconteceu no distrito de São Jorge. Teve participação de várias famílias, exatamente como ocorreu na deste ano. As crianças são convidadas a fazer jogos lúdicos, desenhos e cartazes para serem levados e apresentados ao longo da marcha;
5 – Ensinamos às nossas crianças que Maconha é uma planta, com muitas propriedades medicinais. Uma planta como tantas outras que existem na natureza. Muitas crianças a chamam de remédio porque veem seus familiares usando o óleo de maconha como um fitoterápico, um remédio para o tratamento de diversas doenças e melhoria da qualidade de vida;
6 – Nossa missão, com a realização da marcha, é buscar promover uma reflexão na sociedade, uma reflexão baseada em estudos e dados científicos e não em ideologias ou crenças religiosas;
7 – Estamos dentro da legalidade que o Estado brasileiro nos impõe a todos e defendemos nosso direito à cidadania integral e à saúde;
8 – “O direito à livre manifestação do pensamento: núcleo de que se irradiam os direitos de crítica, de protesto, de discordância e de livre circulação de ideias – abolição penal (“abolitio criminis”) de determinadas condutas puníveis – debate que não se confunde com incitação à prática de delito nem se identifica com apologia de fato criminoso – discussão que deve ser realizada de forma racional, com respeito entre interlocutores e sem possibilidade legítima de repressão estatal, ainda que as ideias propostas possam ser consideradas, pela maioria, estranhas, insuportáveis, extravagantes, audaciosas ou inaceitáveis – o sentido de alteridade do direito à livre expressão e o respeito às ideias que conflitem com o pensamento e os valores dominantes no meio social. (Parte do voto do ministro Celso de Mello)
9 – Nosso objetivo é abrir canais de diálogo, levar informações qualificadas às autoridades locais e à sociedade para que possamos construir uma relação produtiva e positiva com a Maconha/Cannabis Sativa, uma planta que pode render dividendos para a saúde pública, a agricultura, comerciais e fiscais para o Brasil.
Aprovação do Canabidiol
O debate sobre a prescrição e acesso a Cannabis medicinal e canabidiol para tratamentos médicos vem sendo amplamente debatido nos últimos anos. O assunto voltou recentemente ao debate com a apresentação de um novo projeto, pelo senador Paulo Paim (PT-RS), que institui a Política Nacional de Fornecimento Gratuito de Medicamentos Formulados de Derivado Vegetal à Base de Canabidiol pelo Sistema Único de Saúde (SUS)
De acordo com o PL 89/2023, a política assegura o direito ao medicamento, nacional ou importado, à base de Cannabis para uso medicinal, em associação com outras substâncias canabinoides, incluindo o tetrahidrocanabinol, nas unidades de saúde públicas e privadas conveniada ao SUS. Para receber o medicamento ou a substância, o paciente deve estar cadastrado no Sistema Único de Saúde (SUS), não ter condições financeiras de comprá-lo e apresentar pedido médico, acompanhado de laudo com as razões da prescrição.
Na justificativa do projeto, Paim cita que o Judiciário avança ao conceder medidas liminares autorizando a importação desses medicamentos e o autocultivo, assim como a produção por associações para distribuição a seus associados, mediante prescrição médica.
Ele ainda argumenta que desde 2016 a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou diversas normas para regulamentar o acesso a esse tipo de medicamento, e hoje já são mais de 20 produtos autorizados pela agência. Além disso, de acordo com o senador, alguns estados já implementaram iniciativas que facilitam o acesso a tratamento à base de Cannabis.
“A legislação dos entes subnacionais vem avançando a passos largos. Municípios como Salvador, Porto Alegre, Mogi das Cruzes, Ribeirão Pires, São Paulo, Goiânia, entre outras, e estados como São Paulo, Alagoas, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Nortes, DF e Piauí, vêm avançando nessa direção por meio da discussão ou mesmo aprovação de programas ou políticas para incluir tais medicamentos entre os assegurados pelo Sistema Único de Saúde”, diz Paim.
No Brasil, não há regulamentação para o plantio da erva e a produção de medicamentos. A Anvisa libera apenas a importação controlada de remédios a partir de pedidos de pacientes.
***Com informações da Agência Senado, da Ascom do STF e da Associação Terapêutica Sou Cannabis
****Esta reportagem pode ser reproduzida em parte ou no todo, deste que citada a fonte: Jornal O VETOR.