UMA BATALHA OU A BATALHA: O PSICOLÓGICO E O SOCIAL NA ESCRITA CLARICIANA EM A HORA DA ESTRELA
Larissa Cardoso Beltrão – laricinhabeltrao@hotmail.com
Em seu último livro, já perto da morte, Clarice Lispector deu o último grito confirmando seu legado, enquanto escritora.
Larissa Cardoso Beltrão¹
Lucimária Ferreira dos Santos
Luana Alves dos Santos
Rozivânia Moreira dos Reis
Edilene Santos de Jesus²
Em seu último livro, já perto da morte, Clarice Lispector deu o último grito confirmando seu legado, enquanto escritora. Não o de uma escritora profissional como ela mesma não se considerava, e longe de nós contrariá-la. Mas como a de uma criadora literária otimista e provocativa. Inventora de um personagem-narrador que deu vida e morreu com sua personagem.
Rodrigo S.M., narrador-personagem atrás da qual ela se escondeu, deu vida a Macabéa com a proposta de lançar uma pergunta, com o intuito de que que alguém lhe desse a resposta. O romance é narrado a partir da visão do narrador onisciente, um escritor fictício que gozava de certo prestígio e que, portanto, se apresentava como alguém de situação financeira aplaudida pela burguesia a “fraca aventura” (LISPECTOR, p.15, 1988), diferente da personagem central,uma nordestina amarelada que saiu do sertão de Alagoas em Maceió para tentar a vida “numa cidade toda feita contra ela” (LISPECTOR, p. 15), o Rio de Janeiro.
Macabéa é uma alfinetada no ego e na consciência do leitor, é a típica figura de uma retirante nordestina que, como tantas outras, partiu para o Rio de Janeiro em busca de melhores condições. Descrita por Rodrigo S.M. como “tola”, “feia”, “café frio”, “um acaso”, “filha de não-sei-o-quê”, “cadela”, “assexuada”, “uma caixinha de música meio desafinada”, ela também é alvo das críticas de Olímpico de Jesus seu único e ex-namorado como “muda de expressão” e “cabelo na sopa que ninguém quer comer”.
A obra é apresentada a partir da seguinte perspectiva: “Esta história acontece em estado de emergência e de calamidade pública. Trata-se de livro inacabado porque lhe falta a resposta. Resposta esta que espero que alguém no mundo me dê”. (LISPECTOR, p.10 – Dedicatória do autor). Em que consiste, então, a pergunta do livro? Qual era o intuito de Clarice ao relatar a vida e a morte de um ser invisível e desprezado pela sociedade? Em denunciar a situação de calamidade pública na qual vivem os milhares de nordestinos que migraram para a cidade grande e em revelar o preconceito sofrido por estas pessoas. Nesse contexto, surgem as perguntas: De quem é a culpa? Qual seria o porquê disso? Situação-conflito descrita claramente no trecho:
E também porque se houver algum leitor para essa história quero que ele se embeba da jovem assim como um pano de chão todo encharcado. A moça é uma verdade da qual eu não queria saber. Não sei a quem acusar, mas deve haver um réu. (LISPECTOR, 1998, p.39).
Clarice consegue despertar a consciência de seu leitor trabalhando com originalidade de estilo, simplicidade na linguagem, e uma profunda construção psicológica dos personagens. No caso deste romance, em especial, de Macabéa que em consonância com sua posição social trava um conflito interno, uma batalha do ser, ela com ela mesma. Faz uso de paradoxos, adjetivos, humor, ironia, drama, comparação e tragédia trazendo a tona características sociais de uma burguesia que fazia questão de esconder o preconceito contra a figura dos nordestinos descritos nos trechos: “O rapaz e ela se olharam por entre a chuva e se reconheceram como dois nordestinos, bichos da mesma espécie que se farejam”. (LISPECTOR, 1998, p. 43) e “não desconfiava (Olímpico de Jesus) que as cariocas tinham nojo daquela meladeira gordurosa”. (1998, p.57).
Não obstante, flagramos ainda um retrato da marginalização, bem como da ascensão de uma burguesia que cresce massacrando os oprimidos: “se é pobre, não estará me lendo porque ler-me é supérfluo para que tem uma leve fome permanente. Faço aqui o papel de vossa válvula de escape e da vida massacrante da media burguesia”. (LISPECTOR, 1998, p.30). Em dada situação, Macabéa, pela primeira vez, viu-se desejosa de ler uma obra literária: “mas um dia viu algo que por um leve instante cobiçou: um livro que seu Raimundo, dado a literatura deixara sobre a mesa. O título era “Humilhados e Ofendidos”. Ficou pensativa. Talvez tivesse pela primeira vez se definido numa classe social”. (LISPECTOR, 1998, p.40).
A cena descrita acima, coloca-nos diante uma temática que não fora obra do acaso. O título do livro de seu Raimundo era a representação da própria Macabéa. Personagem cortada por um silêncio que, simultaneamente,incomoda Rodrigo S.M. e provoca indignação no leitor. Analfabeta e dotada de vocabulário escasso “ela falava, sim, mas era extremamente muda. Uma palavra dela eu às vezes consigo, mas ela me foge por entre os dedos” (LISPECTOR, 1998, p. 29). A ausência de fala da protagonista do romance, simboliza a falta de acesso ao discurso de toda sua classe, “ela era calada por não ter o que dizer”.( 1998, p. 33).
Sua trajetória fala por si só, revela sua vida sofrida, de poucos luxos e direitos, destino trágico, de poucos desejos e sonhos e de magra esperança de melhorias. Legítima representante de uma classe que, em meio a uma sociedade desumana e cruel, sofre com a imposição de valores e padrões capitalismo selvagem, que rotula e exclui, não conferindo à massa o direito de gozar de seus direitos, sendo submetida tão somente ao trabalho, que embora não fosse considerado escravo, trazia resquícios desse tempo.
A questão da pobreza e da miséria da massa é fortemente acentuada na personificação dessas mazelas, tal qual podemos confirmar a partir do nome “Maria”. A obra apresenta quatro Marias, que como Macabéa, são mulheres nordestinas deserdadas pelo destino, marcadas para sofrer até manchar seus rostos magros e marcados pelo cansaço. E rachar a pele, os pés, e mãos calejadas pela ação da natureza dos sertões, única herança que elas têm direito.
Esta obra de Clarice é uma tentativa, bem sucedida por sinal, de articular a fala, a escrita e a vida: “juro que este livro é feito sem palavras. E uma fotografia muda. Este livro é um silêncio. Este livro é uma pergunta”. (LISPECTOR, 1998, p. 17). Um silêncio que grita alto nos ouvidos de nossa consciência e de nossas almas. Uma pergunta que salta das páginas frias do romance e adentra nossas cabeças, que coloca-nos, enquanto leitores, diante dos problemas sociais que afligiam, e ainda afligem a sociedade contemporânea. Questionamentos que colocam em questão o valor e o peso dos valores vigentes em nossa sociedade, a batalha constante entre o ser e o ter.
Clarice Lispector, através de Rodrigo S.M., faz uma análise profunda do psicológico de suas personagens, principalmente de Macabeá – a protagonista onipresente que, como o narrador, está em todos os lugares, uma vez que o enredo surgiu da necessidade de retratar a sua história.
O estilo de vida capitalista é reafirmado na medida em que Macabéa perde suas características humanas, reificada pelo capitalismo vigente, ela é coisificada e fatalmente comparada ao capim “ela era subterrânea e nunca tinha tido floração. Minto: ela era capim”. (LISPECTOR, p.31). No trecho em destaque, o narrador ratifica a ideia de que sua persoagem é apenas uma das nordestinas marcadas com vida sofrida, como ela, marcada pela leveza, descrição e brotamento como o capim, há muitas outras no país inteiro. Brotam em cada beco ou esquina como capim verde, basta que cada um procure enxergar.
É importante que destaquemos ainda que, as informações que recebemos acerca de Macabéa nos chegam através de Rodrigo S.M. – um narrador marcado por uma profunda crise existencial e que só existiu para contar essa história. Sufocado por suas inquietudes, ele busca trazer a luz do conhecimento dos seus leitores o poder da palavra e a limitação da literatura diante da busca existencial.
E é neste ponto que as histórias de Rodrigo S.M. e Macabeáse cruzam, a fusão das classe, a burguesia e o proletariado, é a materialização do estado emocional e psicológico de Clarice que, durante seu processo de escrita, viu-se diante de uma batalha contra o câncer e ao mesmo tempo consigo mesma, viu-se inquieta diante das problemáticas sociais. Rodrigo S.M. foi seu porta voz, sua possibilidade de dizer-se sem uma exposição direta.
Rodrigo S.M. nasce e, logo em seguida, dá vida a Macabéa, um ser que não dispõe de voz para narrar sua própria história, a narrativa de vida de um ser invisível, uma estrela que só tem sua luminosidade reconhecida em seu leito de morte. O astro luminoso Macabeábrilha, como tanto desejava, justamente o momento de sua redenção. Seu momento de fama não chega do mesmo modo que chegou para Marilyn Monroe. Para uma legítima representante de uma classe oprimida e marginalizada, o destino mais feliz é sempre o da morte. Condição que lhes permite, primeiro abandonar os sofrimentos que lhe são impostos pelo destino, depois porque conseguem, ainda que por um instante, sair da margem e ocupar o centro. Passam a ser notícia, ainda que nas páginas trágicas, ocupar um espaço nas linhas dos jornais já é um avanço.
A leitura deste romance coloca-nos diante de realidade que ainda assola nossos dias, as demandas do sistema capitalista provocaram mudanças significativas não só no processo de trabalho, mas principalmente na vida das pessoas. O espetáculo do atropelamento de Macabéa, marcou sua hora, a hora da estrela que, como tantas outras, vê seu brilho ofuscado pela pressa de uma sociedade que, cega, não tem condições, e tempo, para olhar para os seus, do contrário, oprime, humilha e coisifica, provocando a constante batalha introspectiva, o ter e o ser.
Referência Bibliográfica:
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
¹ professora de Literatura Brasileira III na Universidade Estadual de Goiás, campus Campos Belos.
² Graduandas em Letras pela na Universidade Estadual de Goiás, campus Campos Belos.