Tragédia em Santa Maria: Deixem os mortos morrer em paz
René Amaral*
É um misto de emoções contraditórias e impulsos confusos. Tanta tristeza e dor, misturadas com o nojo de ver canalhice e ambição desmesuradas por audiência e lucros, que o lógico deveria ser começar com uma golfada de vômito, uma enxurrada de lágrimas e uma fieira de xingamentos do mais baixo calão possível, algo de deixar o Costinha com vergonha.
Desde a manhã de domingo (27/01) presenciamos mais um show de mídia irresponsável, incompetente e sanguinária. A começar pela cobertura em si, um festival de como não se faz jornalismo. Até o meio da manhã, várias horas depois do fato consumado, as imagens que apareciam, como que editadas para um streaming em looping (quando o filme acaba e começa de novo automaticamente), ainda eram as da madrugada. Isso é o resultado de empresas que valorizam mais a cobertura “ampla”, estadual, nacional, em detrimento da regionalizada, mais próxima de cada realidade e mais capaz de prestar o serviço público de informar o que está acontecendo, ao invés do que já aconteceu e todos já estão cansados de saber.
Então, as imagens se repetiam, como se uma fita de VT (isso é do meu tempo) emendada ficasse rodando constantemente a mesma coisa, as mesmas imagens obsessiva e doentiamente repetidas. Informação que é bom, só através de depoimentos confusos de quem não tinha nem condições de se manter em pé. Então chegam as equipes de reporcagem e começa o festival de suposições. Eu não estou aí pra saber o que pensam os editores, em sua maioria canalhas insensíveis, dispostos a tudo pra capitalizar em cima da dor alheia. Quero fatos, e fatos, num caso como esse, são a última coisa a aparecer. Mas os editores nem querem saber disso, querem explorar o sentimento, meio confuso, de todo ser humano, que o leva a parar junto ao acidente de trânsito, prejudicando até a chegada de socorro, só pra ver o sofrimento dos outros e dar graças a Deus de não ser o próprio.
Felicidade não dá ibope
Um festival ridículo de humanidade pervertida, o pior de cada um, mostrado sem pudor e vergonha, traduzido na “cobertura” que ninguém, no fundo quer, ou quereria, se fosse ele ali, sofrendo com o filho morto no colo. Números desencontrados, confundindo quem mais precisa de informação, num afã de ser o primeiro a mostrar o que ninguém, no fundo, quer ver. Nesse tipo safado de “cobertura”, mais vale ficar repetindo o que todos já viram que ficar quieto no seu canto, com a programação normal, transmitindo somente flashes relevantes, quando necessário. Isso faz que a dor dos que perderam os seus fique cada vez mais banalizada e espetacularizada, despida de seu caráter trágico e triste: o sofrimento vira o fantástico show da morte e a dor vira notícia.
Aí vem a vez do desfile dos “especialistas” em tudo, botando o cadeado na porta já arrombada. Mais uma corja que vive do sofrimento que não lhe toca tanto o coração, quanto lhe aumenta a conta bancária. Depois do desastre consumado, eles vêm nos contar como aquilo poderia ter sido evitado. A culpa é sempre das autoridades, como se cada um não tivesse, ali, o seu quinhão doloroso de responsabilidade. A canalhice é tanta que chegam a se curvar para atender aos anseios dos donos de emissoras, de envolver os que não lhe merecem o devido respeito, ou não lhes servem os interesses; que informar com idoneidade.
Mas o pior ainda não chegou, os comentaristas ainda não subiram ao palco da tragédia, pra transformar a dor em cacife político e, de novo, engordar sua merreca e aumentar seu cartaz com os donos das câmeras. Esse é, com certeza, o pior tipo de abutre. Eles se dividem em comentaristas opinionados, chargistas sem nenhum senso de humor e piadistas de mau gosto, sempre prontos a ofender a todos, só para ferir uns e outros que não se comportam a contento. Eles tentam de toda forma passar ao próximo nível de baixeza humana, que quer transformar tudo em índices, em lucro fácil e ilusão de competência. Nesse grupo asqueroso estão a maioria dos apresentadores de noticiários e “jornalistas” de catástrofes. Esses dias, ouvi o Boechat dizendo que um editor, na cobertura da posse de Obama, disse a ele: “Bem que podia acontecer um atentado, afinal essa posse não é mais notícia há uns quatro anos!” Isso revela bem por que a profissão de jornalista sempre foi vilipendiada. Afinal, eles só existem em função das catástrofes que emulam o pior de cada um que se propõe ao serviço de informar. O bem não é notícia e a felicidade não dá ibope. (Texto originalmente publicado no Observatório da Imprensa)
*René Amaral é artista plástico, Petrópolis, RJ