TERRAS DEVOLUTAS – Após 62 anos de tramitação, STF nega posse da União.

O julgamento marca a resolução do caso mais antigo em tramitação no Supremo.

Por Danilo Vital**

Cabe à União provar que adquiriu terras, especificar sua localização e comprovar sua plena utilidade antes da promulgação da Constituição de 1891 para evitar que, segundo o artigo 64 da mesma, elas se tornassem devolutas e ficassem sob posse do governo do estado. Por não cumprir esses requisitos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal manteve a validade de 11 títulos de posse expedidos por órgão estadual na região de Iperó, no interior de São Paulo.

O voto da relatora, ministra Rosa Weber, foi seguido por unanimidade.

O julgamento marca a resolução do caso mais antigo em tramitação no Supremo. A União Federal ingressou com Ação Cível Originária 158 em 1958, ano em que o juízo de primeiro grau declinou de sua competência em favor do STF. O processo passou mais de duas décadas sendo sucessivamente suspenso para tentativa de acordo. A decisão da ministra Rosa Weber, relatora, ocorre após 62 anos de tramitação.

Histórico

A situação tem origem no Império. Em 1840, Dom Pedro 2º visitou a Fazenda Ipanema, que abrigava a Real Fábrica de Ferro, e pediu à província de São Paulo a anexação de terras, que ficaram conhecidas como Campos Realengos.

O objetivo era utilizá-los como reserva de floresta para combustível para a metalúrgica. A anexação ocorreu em 1872: 155 alqueires, correspondentes a 366 hectares.

A Proclamação da República, em 1889, deu fim ao Império, e a primeira Constituição republicana, em 1891, determinou em seu artigo 64, parágrafo único, que “os próprios nacionais, que não forem necessários para o serviço da União, passarão ao domínio dos Estados, em cujo território estiverem situados”. Ou seja, seriam consideradas terras devolutas.

Assim, o estado de São Paulo deu início a ação discriminatória, que tramitou regularmente de 1939 a 1958, em que obteve a titularidade das terras. Em 1965, o Serviço de Patrimônio Imobiliário da Secretaria da Justiça e Negócios do Interior de São Paulo expediu títulos, que foram alienados a terceiros.

A população que ocupou a área na época transformou-a em dois bairros de Iperó, com cerca de 4 mil pessoas, atualmente na quarta geração de moradores.

Em 1968, a União propôs a ação de anulação dos 11 títulos de posse, sob alegação de que não foi citada na ação discriminatória. Defendeu que as terras dos chamados Campos Realengos não eram devolutas, portanto a alienação feita pelo estado de São Paulo seria nula. Para isso, se baseou em perícia feita pelo Serviço Geográfico do Exército, em 1928.

Ônus da prova

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Relatora do caso, a ministra Rosa Weber entendeu que essa perícia é inconclusiva, pois não há definição sobre quais são exatamente os Campos Realengos. Portanto, não há como saber se esse trecho de terra, agora ocupado por população em Iperó, foi o considerado na ação discriminatória. Para além disso, afirmou que caberia à União, como herdeira do Império, comprovar o domínio de fato da área.

Na análise da relatora, concluiu que a União demonstrou a compra e anexação dos Campos Realengos, mas que estes fossem efetivamente uteis para o fim que se prestariam — servir de combustível para os fornos da usina de ferro. Também não foi possível saber sua localização exata, inclusive porque a demarcação só se deu 1928, no laudo citado pela União.

“Não restou demonstrado o domínio da União sobre a área reivindicada. Ainda que se aceite a compra e anexação das terras realengas, quais seriam essas terras? Impossível afirmar com segurança. Mesmo que os Campos Realengos fossem de sua propriedade, não há prova segura de sua delimitação”, concluiu a ministra Rosa Weber.

Função social

“Não bastasse a ausência de prova segura do domínio da área, acresço outro argumento: a necessária preservação da segurança jurídica pelo ângulo subjetivo, pois há pessoas por trás das folhas. O que era terra doada a poucas pessoas hoje constitui bairros. Deve-se considerar a justa expectativa alimentada por gerações que fixaram residência e investiram na área que era titulada pelo estado de São Paulo”, afirmou a relatora.

O impacto social da decisão sobre as cerca de 4 mil pessoas foi destacado em todas as sustentações orais, em especial a feita em nome da prefeitura de Iperó, que ingressou como amicus curiae. Destacou-se que, independentemente do resultado, o governo municipal acreditava ser possível a regularização rápida da situação das pessoas atingidas.

“Nesse embate, o município tem dificuldade de atender questões sociais. É difícil obter convênios para fazer asfalto e infraestrutura, porque dependem de regularização. Com recursos próprios, o município construiu postos de saúde e escola, mas em área sem matrícula. Esses bairros só têm água encanada porque o município ingressou com ação civil pública contra a Sabesp. Nenhuma área tem esgoto”, exemplificou o advogado Solano de Camargo, ao Plenário.

Esse viés foi ressaltado por ministros ao seguir o voto da relatora. “Ainda que houvesse a menor legitimidade da União, seria uma temeridade a essa altura, passados tantos anos, proferirmos uma decisão desfazendo tais títulos e acarretando até a expulsão dessas áreas”, disse o ministro Ricardo Lewandowski.

O ministro Luís Roberto Barroso entendeu que, mesmo que a União conseguisse provar os argumentos, a situação está consumada e torna inviável decisão em contrário.

O ministro Alexandre de Moraes também destacou situação fática irreversível, mas não só. “Se a União alega isso desde 1872, por que não entrou com ação rescisória da discriminatória? Por que deixou passar dez anos para entrar com outro tipo de ação, baseada em certidão absolutamente imprópria, que não descrevia exatamente a terra?”, indagou. O voto da relatora, ministra Rosa Weber, foi seguido por unanimidade.

***Danilo Vital é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.

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