SOB O OLHAR DE NIETZSCHE, O ASPECTO TRÁGICO NA POESIA DE CECÍLIA MEIRELES

Larissa Cardoso Beltrão – laricinhabeltrao@hotmail.com – ¹Sandra Michele
Tzotzakis Munhoz – ¹Ronivaldo de Oliveira Rego Santos – ¹Larissa Cardoso Beltrão

A relação entre literatura e filosofia é uma constante que não pode ser negada. Ainda no século XIX já era possível observar, dentre tantos outros, nas obras de Nietzsche e no século XX nas de Sartre e Camus características e traços que também nos permitiram considerá-los, além de filósofos, grandes literatos. Do mesmo modo, não obstante, nos deparemos com poetas que conduziram seus textos pela via filosófica, como Dostoievisk, Shakespaer, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector e Cecília Meireles, sobre quem versaremos ao longo deste trabalho. Dito isto, ressaltamos os primeiros, filósofos poetas, perceberam a necessidade da arte para a condução da vida, os últimos, poetas filósofos, fizeram da filosofia uma ferramenta para auto reflexão. Estando ambos os grupos mediados pela arte, e fundamentados na existência humana.
Em seu artigo Literatura e filosofia: Grande Sertão: veredas, Luiz Costa Lima evidencia essa relação, ao afirmar que “A Literatura é objeto de conhecimento filosófico porque é uma forma simbólica, porque há um domínio do simbólico, a que se atém o pensamento – ponto de convergência da filosofia com a linguagem: o domínio do sentido das proposições […]” (LIMA, 2002, p. 204). Diante do exposto, podemos dizer que a filosofia seria, pois, o discurso sobre outros campos, um espaço de reflexão sobre as mais diversas questões.
Com o intuito de evidenciar a relação entre literatura e filosofia, colocaremos em cena a relação entre os traçados filosóficos de Nietzsche e a poesia trágica de Cecília Meireles. O primeiro algoz contumaz das falsas tábuas de valores engendrados pela história humana, em especial pelo ideal ascético, para ele personificado no ideal cristão, é sinônimo de decadência, pois a negação do mundo terreno em função de uma existência divina não pode ser justificada como assinala Nietzsche (2009, GM, terceira dissertação). A segunda, portadora de uma sensibilidade incrível, que fez de sua poesia ora espaço revelador de sua fragilidade, ora um lugar que lhe conferia a força humana. A partir dos elementos mais simples e corriqueiros, valendo-se de linguagem elaborada e metafórica Cecília deu vida a versos incomparáveis, suaves e ásperos, líricos e trágicos.
Com o intuito de proporcionar o diálogo entre filósofo e poeta, examinemos, o que é concebido como trágico, tanto para a literatura quando para o viés nietzschiano. Inicialmente devemos dizer que tragédia, segundo as perspectivas aqui mencionadas, é bem diferente da que se observa no cotidiano. Quando se fala de tragédia, por exemplo, na rua, há sempre uma conotação de algo muito ruim, que não poderia ter acontecido em circunstâncias normais.
A tragicidade aparece como algo odioso, uma vontade de nada. Sobre isso assevera Nietzsche:
[…] esse ódio ao que é humano, mais ainda ao que animal, mais ainda ao que é matéria, esse horror aos sentidos, à razão mesma, o medo da felicidade e da beleza, o anseio de afastar-se do que seja aparência, mudança, morte, devir, desejo, anseio – tudo isso significa, ousemos compreendê-lo, uma vontade de nada, uma aversão à vida, uma revolta contra os mais fundamentais pressupostos da vida […] (2009, p. 139-140).
No caminho oposto à supracitada vontade de nada, emergem as visões poética e filosófica, pelas quais a tragédia é um momento de criação e de libertação, um momento de catarse, pelo qual todos os seres humanos passam. Contudo há quem negue estes momentos e quem os afirma. Em linguagem nietzschiana, quem afirma a tragédia afirma a vida, quem nega a tragédia procede pela negação da vida. A este tipo Nietzsche(2007, NT) aponta como protótipo Sócrates.
De modo que, a vida se torna trágica porque impõe ao ser humano a condição de artista. Nesse caso específico trataremos da afirmação do ser poeta, um indivíduo capaz de superar, e tratar de algumas condições por meio de uma sensibilidade que só se faz possível pelo crivo da arte. Aspecto este que pode ser percebido no poema Motivo, de Cecília Meireles:
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento (MEIRELES, 2002, p. 11).
Nos versos citados, não obstante, observamos as contradições experimentadas pelo sujeito lírico que destaca, por meio de uma dúvida paradoxal, toda a sua vontade de viver, ao passo em que reafirma também o valor e a intensidade do instante. Seu canto representa uma apologia à vida, independente de ser ela é boa ou ruim. A vida por si só seria, nessa perspectiva, ainda que vazia de certezas e verdades, um privilégio. Para tanto seria necessário apenas que reconhecêssemos sua efemeridade, e uma vez que ela passa tão rápido, não nos seria conveniente ficar presos aos sentimentos mesquinhos. Doutrinados por uma sociedade capitalista que fomenta a superficialidade e o egoísmo, a ordem seria direta, clara, e única: viver! O grito é a favor da vida, sem mistificação.
Tal perspectiva aproxima a voz de Cecília Meireles do conceito de dionisíaco, proposto por Nietzsche com o intuito de assinalar a existência dos seres humanos trágicos, que não desprezam a vida em função de nenhuma fatalidade ou descaminho, haja vista ser a mais pura representação da vida. Nesta medida, há ainda o reconhecimento do amor fati, representação plena de amor à vida. A sequência do poema nos conduz, mais uma vez, à necessidade de se afirmar o viver:
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada (MEIRELES, 2002, p. 11).
O reconhecimento da efemeridade das coisas, dá vez à certeza de que um dia tudo se calará, pois o canto é efêmero, portanto cabe ao humano cantar a vida, pois somente ela é eterna; mesmo que os homens morram, a vida continuará, seu canto, certamente, ecoará em outros seres. Assim, nada melhor do que nos transformarmos com ela, sairmos do estado de permanência dogmática e passarmos a portadores, artistas desta vitalidade. Destacamos ainda a efervescência do eu lírico, haja vista que impele um olhar singular sobre a existência, em especial a sua própria condição humana e, portanto, frágil.
A relação entre Cecília e Nietzsche pode ser evidenciada novamente pela via do reconhecimento da rapidez com que a vida nos consome. Situados por este prisma, por que ficar reclamando da vida? Não há motivos para negá-la, pois não existirá, na perspectiva de Nietzsche, outro mundo.
Nas estrofes do poema Retrato, contemplamos a perspectiva da aceleração dos tempos. Cecília desvela como a vida nos devora antropofagicamente, como o tempo passa de maneira fugaz.
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
– Em que espelho ficou perdida (MEIRELES, 2002, p. 13).
Com um tom melancólico o sujeito lírico discorre sobre o passar dos anos. A rapidez dos fatos não nos permite contemplar o passar o tempo, foi tudo rápido. A efemeridade do chronus só torna-se passível de percepção através das marcas deixadas ao longo da vida. O recurso estilístico das conjunções assim e nem exprime caráter conclusivo, quanto a primeira e de acréscimo, no caso da segunda, cabível de ser interpretado, neste caso, em relação a sequência de modificações não somente do rosto, mas da própria vida a qual a poeta se refere, uma vez que este é uma espécie de metáfora de sua transitoriedade terrena.
É por meio da aceitação da efemeridade da vida tal como ela se apresenta é que o ser humano poderá valorizá-la. Saber-se finito e frágil possibilita ao homem voltar-se para as questões essenciais, como a própria poetisa sugere. A certeza de que chegará o tempo de silêncio é a força que a motiva para o canto. A finitude da existência nos convida à qualidade.
Finalmente, pode-se dizer que Cecília e Nietzsche nos conduzem pelas trilhas da afirmação efetiva da vida. Isso só ocorre a partir do momento que reconhecemos que não convém criar um padrão, um ideal de vida que pressuponha a falta de sofrimento. A vida é sofrível, difícil, mas por isso mesmo exige de nós um espírito alegre, sagaz e ao mesmo tempo, rígido para enfrentar com sereno-jovialidade a vida.

¹ Estudante do 4º ano de Letras da UEG – Universidade Estadual de Goiás, campus Campos Belos.
² Professor dos cursos de Letras e Pedagogia da UEG – Universidade Estadual de Goiás, campus Campos Belos e Professor da Rede Municipal de Ensino de Campos Belos.
³ Professora de Literatura Brasileira III na Universidade Estadual de Goiás, campus Campos Belos/Mnda. em Estudos Literários pela Universidade federal de Goiás (UFG).

Referências Bibliográficas
LIMA, Luiz Costa (org.) Literatura e filosofia: (Grande Sertão: veredas). In: Teoria da literatura em suas fontes. vol. 1. seleção, introdução e revisão técnica Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2002.
MEIRELES, Cecília. Os melhores poemas de Cecília Meireles. Seleção Maria Fernanda. 14. ed. São Paulo: Global, 2002.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. (Companhia de bolso).
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. (Companhia de bolso).

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