Resquícios de opressão e medo: Graciliano Ramos e a Infância dos meninos tristes do sertão

Graciliano Ramos de Oliveira é um dos grandes nomes do regionalismo nordestino, um exímio observador do cotidiano dos moradores dessa região. Marcado pela avidez de repassar ao seu público leitor, o sofrimento de um povo que sempre lutou para sobreviver, sem deixar morrer qualquer esperança de dias melhores.

Larissa Cardoso Beltrão

Roberto Carlos Costa GOMES (GNDO.-FL/UEG)
Rebeca Mendes GARCIA (GNDA.FL/UEG)
Camila Martins dos SANTOS (GNDA.FL/UEG)
Wagner Augusto da SILVA (GNDO.-FL/UEG)
Geane Linhares BILIO (GNDA.FL/UEG)
Simone Silva OLIVEIRA (GNDA.FL/UEG)
Orientadora: Larissa Cardoso BELTRÃO (PG-FL/UFG)

Graciliano Ramos de Oliveira é um dos grandes nomes do regionalismo nordestino, um exímio observador do cotidiano dos moradores dessa região. Marcado pela avidez de repassar ao seu público leitor, o sofrimento de um povo que sempre lutou para sobreviver, sem deixar morrer qualquer esperança de dias melhores.
Segundo dados da e-biografia.net, Graciliano nasceu na cidade de Quebrângulo, Alagoas, no dia 27 de outubro de 1892, sendo o primogênito de quinze irmãos, filho de Maria Amélia Ferro Ramos e Sebastião Ramos de Oliveira. Membro de uma família de classe média, viveu parte de sua infância em Buíque, Pernambuco, e outra parte em Viçosa, Alagoas. Estudou o secundário em Maceió e não cursou a faculdade.
Em 1910, foi morar, com a sua família, em Palmeiras dos Índios, onde em 1927 foi eleito prefeito. Em 1930, mudou-se para Maceió, onde assumiu a direção da Imprensa Oficial e da Instrução Pública do Estado.
Amigo de José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Jorge Amado, estreou na literatura brasileira em 1933 por ocasião da publicação do romance Caetés escrevendo posteriormente: São Bernardo, Angústia, Memórias do Cárcere, Viagem, Linhas Tortas, etc., porém a obra que o consagrou como um dos grandes nomes do modernismo brasileiro foi Vidas Secas, obra na qual relata os problemas financeiros, sociais e climáticos do Brasil Nordestino, sempre convidando o leitor para a criticidade nas relações mantidas entre os homens, ou seja, entre o ser e o ter, em que muitas vezes percebe-se uma coisificação do homem e uma humanização das coisas.
No ano de 1945, Graciliano Ramos deu vida à obra Infância, tida pela crítica como uma autobiografia, na qual ele faz de sua vida infantil, cheia de padecimentos e amarguras, uma ponte para a hibridização do ficcional com a realidade referenciada. BAKHTIN (1997, p.173) diz que “[…] o homem é o centro organizador do conteúdo-forma da visão artística, e ademais que é um dado homem em sua presença axiológica no mundo.” Nesse sentido, ao fazer a memória adulta para se encontrar no passado, Graciliano Ramos quer, ao mesmo tempo em que tenta dar sentido à sua história, encontrar os valores adquiridos e que muitas vezes se perdem ao se tornar um homem responsável, porque pensa demais, maquinando o que deveria ser apenas vivido e expressado.
Destacamos, pois, que a obra Infância tem uma linguagem fácil de ser interpretada, e que chega alcançar o poético. Ao (re)escrever sua memória, o autor coloca em cena uma criança oprimida e humilhada que não tem voz e nem vez tanto na família quanto no meio social, no qual se encontra inserida, o que não legitima sua condição de cidadã, visto que está inserida em um contexto opressão, no qual o poder domina e massacra os mais fracos.
Baseada em relatos de memória do autor, não obstante, reconhecemos uma forma interacional entre personagem e escritor, visto que os dois se misturam, mas não se fundem. No que diz respeito à estruturação, a obra, em seu todo, é composta por 39 contos, que por abordarem a mesma temática, pode ser considerada um romance da dor infantil. Logo no primeiro conto que tem como título Nuvens tem-se recordações, marcantes, de sua primeira infância:
A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de louça vidrada, cheio de pitombas, escondido atrás de uma porta. Ignoro onde o vi, quando o vi, e se uma parte do caso remoto não desaguasse noutro posterior, julgá-lo-ia sonho. Talvez nem me recorde bem do vaso: é possível que a imagem, brilhante e esguia, permaneça por eu a ter comunicado a pessoas que a confirmaram. (RAMOS, 1981, p.9)
A narrativa prossegue com a descrição de sua primeira experiência em sala de aula, seu primeiro contato com as letras “— Um b com um a — b, a: ba; um b com um e — b, e: be” (2007, p.10), provavelmente com 2 ou 3 anos de idade, em uma parada que fizera com a família em uma escola, pois estavam em viagem de Alagoas para Pernambuco, momento em que a criança sai do mundo desconhecido e passa a reconhecer o que se encontra à sua volta, por isso será um dos momentos marcantes de sua vida.
O conto Manhã trata da opressão exercida pela família, em especial os avôs, que não tinham sido educados e, talvez, por isso eram rígidos com o garoto, o narrador. Observamos, nesse conto, a descrição precisa da sequidão do sertão nordestino, elemento que também é perceptível em Verão, no qual a seca massacrante passa a figurar como um novo elemento de opressão muito presente na infância das crianças dessa região:
Um dia faltou água em casa. Tive sede e recomendaram-me paciência. A carga de ancoretas chegaria logo. Tardou, a fonte era distante — e fiquei horas numa agonia, rondando o pote, com brasas na língua. Essa dor esquisita perturbou-me em excesso. Nos sofrimentos habituais eu percebia gestos desarrazoados, palavras coléricas. A minha vida era um extenso enleio que sobressaltos agitavam. Para bem dizer, eu flutuava, pequeno e leve. De repente, um choque, novos choques, estremecimentos dolorosos. Impossível queixar-me agora. Não me dirigiam ameaças, abrandavam, e as recusas apareciam quase doces. Na verdade não recusavam. Num minuto haveria muitos canecos de água. Chorei, embalei-me nas consolações, e os minutos foram pingando, vagarosos. A boca enxuta, os beiços gretados, os olhos turvos, queimaduras interiores.
O conto Um Cinturão é o relato das surras que o pai lhe dava sem motivos, simplesmente pelo (des)prazer de bater. Certo dia, por não encontrar seu cinturão, de imediato o pai culpa o filho e, consequentemente, descarrega sua raiva no garoto. Mas ao encontrar seu cinturão, mesmo sabendo que o menino não era o culpado, por medo de perder sua autoridade, o pai se esquiva de assumir o seu erro e deixa tudo como está, o feito pelo não feito.
Mais adiante, em Leitura, somos tomados de súbito por um ato de bondade do pai que pergunta ao filho se não desejava estudar e ficar sabido como padre João Inácio e o advogado Bento Américo. Mesmo respondendo, a princípio, que não tinha essa vontade, é convencido pelo pai que diz ser o melhor para a vida, sendo este o caminho para aquisição de poder. No entanto, essa foi mais uma experiência traumatizante, visto que a educação tradicional não perdoava o aluno que não fixasse o que lhe era ensinado:
Sozinho não me embaraçava, mas na presença de meu pai emudecia. Ele endureceu algumas semanas, antes de concluir que não valia a pena tentar esclarecer-me. Uma vez por dia o grito severo me chamava à lição. Levantava-me, com um baque por dentro, dirigia-me à sala, gelado. E emburrava: a língua fugia dos dentes, engrolava ruídos confusos. Livrara-me do aperto crismando as consoantes difíceis: o T era um boi, o D uma peruinha. Meu pai rira da inovação, mas retomara depressa a exigência e a gravidade. Impossível contentá-lo. E o côvado me batia nas mãos. Ao avizinhar-me dos pontos perigosos, tinha o coração desarranjado num desmaio, a garganta seca, a vista escura, e no burburinho que me enchia os ouvidos a reclamação áspera avultava. Se as duas letras estivessem juntas, o martírio se reduziria, pois, libertando-me da primeira, a segunda acudia facilmente. Distanciavam-se, com certeza havia na colocação um desígnio perverso — e os meus tormentos se duplicavam. (RAMOS, 1981, p.107).

Não obstante, é possível perceber uma falta de diálogo entre o pai e o filho, pois muito se quer da parte opressora para o oprimido, mas não se tenta entender o porquê da falta de entendimento das letras. Nesse caso, o que importa é, tão somente, o resultado.
Isso será cobrado, posteriormente, no conto Escola onde, mais uma vez a agonia do menino protagonista é colocada em cena a partir da ampliação dessa problemática, a da alfabetização. A opressão, nesse caso, é exercida pelo sistema educacional que, naquela época, se resguardava da punição para quem não soube escrever, ler e soletrar.
A atmosfera de toda obra é noturna, cenário que remete-nos, instantaneamente, ao espaço das frustrações e medos. Como pudemos perceber, ao longo dos contos relatados, a relação entre pais e filhos acontecia de modo impositivo e, diferentemente do que o título da obra parece sugerir, temos nos enredos narrados histórias que resguardam uma infância nada, ou pouco, feliz. A obra estaria, portanto, estruturada sob o signo da opressão infantil, uma vez que as crianças, no decorrer da infância, estavam submetidas às imposições das instituições das quais faziam parte: família, igreja e escola.
Considerada uma obra autobiográfica, em Infância é possível reconhecer um misto de elementos pessoais e sociais, visto que a memória de Graciliano Ramos volta-se para elementos que afetaram não somente a ele, mas sim a coletividade. Vemos na fala do narrador, uma criança oprimida e humilhada, uma tentativa de dar voz a muitas outras crianças que, assim como ele, sofrem com a sequidão do espaço geográfico em que vivem e, mais ainda, com a secura das relações humanas de seu tempo.
REFERÊNCIAS:
1. Corpus literário para análise:

RAMOS, Graciliano. Infância. 17ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 1981. 275p.

2. Obras de apoio teórico-crítico:

BAKHTIN, Mikhail. O problema do autor. In.: ______. Estética da criação verbal. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 2ªed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p.173-192.

CANDIDO, Antonio. O escritor e o público. In.: ______. Literatura e sociedade. 9ªed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006. p.83-98.

GRACILIANO RAMOS. Biografia. Disponível em: <http://www.ebiografias.net/graciliano_ramos/>.

 

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