QUE DELÍCIA É MORRER EM PAZ E VIVER PARA SEMPRE!

Roberto Cury

O grande cientista italiano Ernesto Bozzano, no seu conhecido livro “A Crise da Morte”, narra, detalhadamente, um fato da passagem de uma senhora cujo nome não citou e que pretendo reproduzir em parte, em face da exiguidade de espaço no jornal e, também, para não abusar da paciência dos leitores.
Eis: “Eu sabia que ia morrer, mas não temia a morte, não fremia a essa ideia… os terrores da ortodoxia haviam perdido toda a eficácia para minha alma: sentia-me pronta a enfrentar a inevitável crise com uma serenidade filosófica …dispunha-me a observar e analisar a lenta aproximação do grande momento. Não queria perder essa suprema ocasião de adquirir conhecimentos psicológicos que escapam às investigações da Ciência. Conservei-me como espectadora impassível dos lentos progressos da minha agonia, esperando comunicar mais tarde minhas observações e prestar um último serviço à humanidade: o de dissipar o terror que a hora fatal produz em toda gente.
Parecia que o meio terrestre se afastava em torno de mim; sentia-me como que flutuar fora do corpo, num desconhecido meio de existência. Não se deu comigo o que julgava experimentar durante a crise da morte… uma espécie de “epílogo da morte”…do qual todos os acontecimentos de suas vidas lhe passariam diante da visão subjetiva. Nada disso… não me sentia atraída nem pelo passado, nem pelo futuro. Um só pensamento dominava a consciência: das pessoas que me amavam e das quais me ia separar. … Não me considerara uma mulher excessivamente terna; levava minha razão a dominar todas as impulsões e todas as emoções. Contudo, nessa hora suprema, a afeição me pareceu o ponto mais alto e a substância de tudo o que há de apreciável na existência.
Esse estado de vigília atenta sobre a aproximação da morte acabou por me esgotar e, pouco a pouco, uma suave sonolência me invadiu.
… Despertei. Esse despertar me pareceu ainda mais doce do que o período que me parecer ao sono. Olhos fechados, permanecia a gozar daquela sensação de paz e serenidade. Como era delicioso! Que perfeito era aquele sentimento de paz! Oh, se ele pudesse eternamente! Sentia-me bem; o que me mostrava que, afinal de contas, ainda não estava a ponto de morrer… Súbito, ouvi algumas pessoas que conversavam a meia voz no quarto ao lado. Ouvindo, nitidamente, pela porta aberta, o que diziam… Eis a frase em questão: “Não duvido de que ela o fizesse com boa intenção; aliás era tão excêntrica! A outra voz respondeu: Sim, muito excêntrica e também obstinada nos seus caprichos. A primeira replicou: Foi muito experimentada pela infelicidade, mas também cumpre se reconheça foi quase sempre a causadora de seus próprios infortúnios. É o que acontece as mais das vezes…” E seguiu-se a narrativa, grotescamente desfigurada, de alguns incidentes da minha vida!
Eu estava surpresa: falavam de mim e falavam empregando o verbo imperfeito: Ela era… Que quereriam dizer? Julgar-me-iam morta? Veio-me à ideia de que aquelas pessoas poderiam pensar mais tarde que fingia estar morta para lhes ouvir a conversação confidencial a meu respeito. Dei-me pressa em chamar uma das minhas amigas, para lhe certificar que eu ainda vivia e me sentia muito melhor… Elas, porém, não se aperceberam do meu chamado e continuaram a conversar sem se interromperem. Chamei de novo, em voz mais alta, porém sempre em vão. Sentia-me tão bem de corpo e de espírito, que me decidi a lhes interromper as imprudentes apreciações, apresentando-me diante delas no outro quarto… mas, o que havia? Fiquei um instante presa de terror, ou de qualquer coisa semelhante. Que manequim era aquele que alguém deitara na minha cama, onde, entretanto, eu deveria estar, muito gravemente enferma, o qual jazia em meu lugar e com o rosto lívido, absolutamente idêntico a um cadáver no leito de morte? Eu o via de perfil; tinha os braços cruzados sobre o peito, as pernas rigidamente estendidas, as pontas dos pés viradas para cima. Sobre ele, um pano branco se achava desdobrado. Mas, coisa estranha! Eu o distinguia igualmente debaixo do pano e reconhecia naquele manequim os meus traços! Meu Deus! Estava então realmente morta? Enorme sensação me assaltou, que parecia abalar-me no mais profundo da alma. Só então foi que todo o meu passado emergiu de um jacto e me invadiu, com grande onda, à consciência.Tudo o que me haviam ensinado, tudo que eu temera, tudo o que esperava em relação à grande passagem da morte e “a existência espiritual se apresentou ao meu espírito com indescritível nitidez. Foi um momento solene e aterrador; porém, a sensação de terror se desvaneceu logo e só a solenidade grandiosa do acontecimento permaneceu…
Éramos três a contemplar aquele cadáver, conquanto uma das três fosse invisível para as outras. … desinteressei-me delas… absorvi-me na contemplação do corpo inanimado… Observava-lhe o pálido aspecto, demudado pelos sofrimentos e com minha mão invisível procurava afastar da fronte os cabelos brancos que a cobriam, enquanto uma inefável piedade me oprimia a alma, ao pensar na sorte daquele corpo velho, do qual me sentia separada para sempre…”
Leitores amigos, abro um parêntese aqui lembrando-me de uma poesia de Herculano Pires sobre a Morte em que ele agradecia o corpo por ter-lhe servido durante a existência corporal, despedindo-se carinhosamente dele. Volto à narrativa de Bozzano.
“Estava então morta? Que estranha sensação a de uma pessoa saber-se morta e se sentir exuberante de vida! Como os vivos compreendem mal o sentido destas palavras. Estar morto significa estar animado de uma vitalidade diferente e extraordinária, de que a Humanidade não pode fazer ideia… Eu adormecera no mundo dos vivos e despertara no meio espiritual. Como é estranho! Só nesse momento foi que me lembrei, pela primeira vez, de que estava no meio espiritual. Até ali, meus pensamentos e minhas emoções se tinham conservado preso no mundo dos vivos!
Mas, onde estavam os espíritos de tantas pessoas cara, que haviam transposto antes de mim a fronteira da morte? Esperava vê-las acorrendo a me darem as boas-vindas no limiar da morada celeste e a me servirem em seguida de conselheiros e de guias. Não me preocupava o insulamento em que me achava e ainda menos me assustava; porém, experimentava um penoso sentimento de decepção e de desorientação. Esse estado d’alma não durou mais que um instante… vi dissolver-se e desaparecer o quarto em que me encontrava e me achei, não sei como, numa espécie de vasta planície… Era indescritível a beleza da paisagem. Caminhava, entretanto, meus pés não tocavam o solo, deslizava sobre ele. Mas onde estavam aqueles a quem eu amara? Muitos anos antes levara ao túmulo, com lágrima de desesperada dor, dois filhos que adorava, uma após outro. Quanto os desejara! …Quando vi diante de mim aqueles mancebos radiosos, um instinto súbito e infalível me preveniu de que eles eram os meus filhinhos que se haviam tornado adultos. Estendi-lhes os braços, como fizera outrora na Terra e dessa vez os apertei realmente ao peito! Oh, meus filhos, meus filhos! Enfim tornei a encontrar-vos! Oh, meus filhos, meus para sempre!
Então perguntei ao Espírito-Guia: Por que fui condenada a passar de um mundo a outro completamente só? O Espírito-Guia: “Condenada não é o termo minha querida amiga. Não estavas só. Assim te parecia, mas, na realidade, eu velava ansiosamente por ti, com muitos outros Espíritos de parente e de amigos, aguardando o momento em que nos fosse possível manifestarmos a ti. Para muitas almas de mortos a passagem para o dos imortais é um período de crise moral muito dolorosa. Tu, porém, não eras uma alma como tantas outras. No curso das vicissitudes mais críticas da vida, preferiste sempre agir sozinha; encerraste constantemente no fundo da alma teus pensamentos, tuas meditações, o fruto da tua experiência, mesmo tuas emoções. …soubeste com uma firmeza de heroína encarar de frente a morte. O teu temperamento convinha que, no meio espiritual, se achasse num insulamento aparente, para melhor apreciar o valor da sociedade espiritual. Assim, desde que sentiste a necessidade de companhia e a desejaste com o pensamento, imediatamente nos achamos em condições de responder ao teu chamado.”
O relato de Bozzano aquece o nosso coração mostrando-nos que a morte não é jamais aquele terrível quadro que nos pintam as pessoas que a temem, mas nos insufla o desejo de buscarmos sempre viver com alegria e disposição, aproximando-nos de todos os entes queridos, familiares e amigos para que ainda que nos restem algumas críticas por termos errado na vida encarnada, sobrem-nos virtudes para reencontrarmos os entes que amamos e que nos antecederam na viagem ao Mundo Maior.

Roberto Cury é colunista dos jornais
“Onze de Maio” e “O VETOR” e militante espírita.

Share

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *