PESQUISA – Lésbicas e bissexuais não contam com preservativos próprios no Brasil.
Mulheres que amam mulheres precisam usar camisinhas externas recortadas; pesquisadora ouviu de fabricantes que “não há público” para confeccionar produto.
Camila Cetrone**
Uma pesquisa que busca quantificar os impactos da falta de preservativos específicos para mulheres que amam mulheres e outras pessoas com vulva aponta que quase 73% fariam uso de uma barreira protetora que seja verdadeiramente eficaz para a o sexo seguro. No Brasil, a comunidade de mulheres lésbicas, bissexuais e outras orientações sexuais carecem de um preservativo específico para que possam se proteger de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) durante a prática de sexo oral.
Com um produto próprio em falta, essa população se expõe a diversos riscos e precisa realizar improvisações com preservativos habituais para conseguirem garantir o mínimo de segurança durante o ato sexual. Por muitos anos, a orientação dada para mulheres lésbicas era o uso de plástico PVC para criar uma barreira protetora, o que se mostrou ineficaz ao longo dos anos. Luvas descartáveis e dedeiras também são alguns itens que já foram adaptados para trazer segurança ao sexo entre pessoas com vulva.
Diante dessa falta no mercado brasileiro, a orientação oficial do Ministério da Saúde é de usar uma camisinha externa, conhecida como camisinha masculina recortada. Retira-se o bico do preservativo e se faz um corte na vertical na lateral, fazendo com que, aberta, ela se transforme em uma barreira que pode ser posicionada e segurada na região da vulva.
Cristina Stevanin, pesquisadora e interlocutora no desenvolvimento de produtos para mulheres lésbicas e bissexuais e proteção de IST, aponta que esse grupo também pode recorrer a um produto odontológico chamado de Dental Dam, uma folha de látex, nitrila ou borracha usada para isolar a boca em cirurgias. Durante o sexo oral, essa camada pode ser posicionada e segurada na região da vulva.
Stevanin se reconheceu enquanto mulher lésbica em 2019 e ficou muito surpresa quando descobriu que não existem preservativos específicos para a comunidade lésbica, bissexual e de outras pessoas com vulva. “Estamos falando de um público extremamente desassistido e sem movimentos que fomentem o desenvolvimento de um produto para cumprir o Artigo 196 da Constituição Federal, que garante o direito à saúde para todas as pessoas”, afirma.
Motivada a trazer soluções para a comunidade, Stevanin começou a esboçar um levantamento sobre a falta de preservativo para mulheres que amam mulheres em 2020 – mas deu andamento ao projeto apenas em 2022 devido à pandemia.
No primeiro semestre deste ano, 170 mulheres que se relacionam com outras mulheres ou pessoas com vulva, distribuídas em 88 cidades brasileiras, responderam uma pesquisa sobre a falta de preservativos específicos no país. Dessas, 72,9% dizem que usariam uma barreira de proteção similar ao Dental Dam para fazer sexo seguro.
Das respondentes, 81 pessoas são bissexuais, 68 são mulheres lésbicas e o restante se distribui entre outras orientações sexuais da comunidade LGBTQIAPN+ e até mesmo heterossexuais.
“A catalogação das respostas qualitativas mostram um número massificado de mulheres que querem segurança, mas querem um design bacana; um produto que não saia do lugar, fixo (porque é necessário segurar a barreira para ser utilizada); com cores, texturas, sensibilidade ao toque; sem sabor; e com outros acessórios”, define a pesquisadora.
“Se cruzarmos as informações de quem respondeu que usaria a barreira protetora, vemos muitas mulheres afirmando que não tem outro item melhor para usar. Então, a barreira protetora seria melhor do que nada”, acrescenta.
Durante o seminário “ESG: O S que ninguém vê! A inovação na escassez”, organizado por Stevanin no último Dia da Visibilidade Lésbica (29 de agosto), a pesquisadora conta que procurou as três maiores fabricantes de preservativos masculinos no Brasil, via SAC, para questionar sobre a falta de preservativos para mulheres que amam mulheres e outras pessoas com vulva. Ela define a experiência como “uma das mais horríveis” da vida dela.
“Foram perguntas extremamente invasivas e desrespeitosas, e a maioria dessas pessoas que conversei, no final e em tom de ironia, diziam: ‘Mas não tem público’. As fabricantes nacionais adotaram a mesma postura. Essas empresas têm diretorias majoritariamente formada por homens extremamente machistas”, conta a pesquisadora.
No entanto, dados do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE) apontam que, além de mais da metade da população do Brasil ser formada por mulheres, cerca de 2,9 milhões de pessoas se declaram como homossexuais – número que pode estar defasado devido aos estigmas e violências que podem impedir a autoidentificação de pessoas LGBTQIAPN+.
“Qual é a responsabilidade social dessas empresas de preservativos masculinos, que fazem campanhas diversas de combate à Aids, de sexo seguro, de Mês do Orgulho, mas que simplesmente ignoram a falta de produtos para mulheres que amam mulheres? E pior: que dizem que não há demanda”, questiona.
Durante o levantamento, Cristina constatou ainda que as camisinhas femininas são raramente vendidas em farmácias, e, ao menos em São Paulo, são distribuídas nas 27 Unidades Básicas de Saúde (UBS) da capital; enquanto os preservativos masculinos e todos os outros itens de uso em relações sexuais estão em todas as farmácias no setor masculino, e as camisinhas são distribuídas até mesmo em estações de metrô, trem e terminais de ônibus.
Segundo dados concedidos à Stevanin pela ouvidoria do Sistema Único de Saúde (SUS), em 2020 (último levantamento) foram distribuídos mais de 353 milhões de preservativos masculinos. Já os femininos, os preservativos internos, tiveram um índice menor, de 15 milhões.
Ao entrar em contato com a ouvidoria do SUS em São Paulo, o órgão apontou que “as instruções de uso [da camisinha masculina recortada] seguem as orientações dos fabricantes. Usos personalizados que têm como objetivos reduzir as chances de infecção de HIV e outras ISTs podem ser dialogados com cada usuário e são de sua responsabilidade, igualmente às outras estratégias alternativas”.
SUS reconhece a desproteção em sexo entre pessoas com vulva.
A pesquisadora conta que a ouvidoria do SUS em Brasília teve uma postura diferente, reconhecendo a falta de barreira de proteção própria para mulheres lésbicas, bissexuais e outras pessoas com vulva. Stevanin recebeu pesquisas do órgão que apontam para a maior vulnerabilidade desse público à contrair ISTs e se colocou à disposição para encontrar uma solução.
Nos Estados Unidos, uma femtech desenvolveu uma calcinha feita em látex ultra fino que promove essa barreira protetora para mulheres e pessoas com vulva, sem a necessidade de segurar a proteção com as mãos. O produto da empresa, chamada MyLorals, é chancelado pelo FDA, o órgão regulador de saúde do país. No site oficial da marca, um pacote com quatro calcinhas protetoras custa US$ 25 (R$ 128,83 na cotação atual).
Stevanin descobriu o produto durante suas pesquisas. Ela entrou em contato com a fundadora e CEO, Melanie Cristol, que se colocou à disposição para tentar trazê-lo ao Brasil.
“Quando disse ao SUS que já existe uma empresa, a resposta do órgão, que me deixou muito emocionada, foi: ‘Peça para que a empresa entre em contato conosco’. Eles precisam que ela se interesse em fazer parte da certificação da Anvisa para, depois, pensar em trazer a tecnologia pelo SUS”, conta Stevanin. O contato com a MyLorals e com o SUS continua em andamento.
Por não ser certificada, Stevanin reforça que é necessário pedir autorização da Anvisa para importar o produto enquanto pessoa física. Esse aval pode ser solicitado pelo 0800 642 9782. “No entanto, não recomendamos a importação como pessoa física sem que o produto esteja homologado pela Anvisa, porque pode colocar em risco a nossa própria vida”, reforça Stevanin.
***FONTE: IG DELAS