O OLHAR DO NARRADOR: UM ZOOM NA DESIGUALDADE SOCIAL NO CONTO “UM LADRÃO”, DE GRACILIANO RAMOS
No conto Um ladrão Graciliano Ramos descreve com maestria o perfil social brasileiro, a narrativa apresenta o protagonista penetrando o interior de uma casa na serenidade da noite. Acuado por seu medo e pela memória da infância, ele vaga pelo interior da residência, onde se depara com o quarto do casal e consegue defraudar dinheiro em uma carteira; A partir da relação de proximidade entre literatura e cinema, somos conduzidos por um narrador onisciente que, ao invadir o pensamento da personagem central, leva-nos a acompanhar sua trajetória. A poucos passos de concluir com êxito sua tarefa, levado pela curiosidade ele vai até o cômodo, denominado, para calcular seus ganhos.
A tenra recordação infantil leva-o, imediatamente para o universo escolar, e toda sua atmosfera. Fazendo-o recordar de dois acontecimentos marcantes para a determinação de seu destino: a indiferença da professora e a menina linda de tranças e olhos verdes. De modo que, já no desfecho do enredo, a tensão é instaurada pelo zoom do narrador. Ao aproximar sua câmara, ele nos dá a informação de que no quarto iluminado repousa uma jovem com o seio descoberto. Pronto para sair da mansão e partir em busca de uma nova possibilidade de futuro ele acaba beijando-a.
A narrativa apresenta-nos uma atmosfera trágica, mas bastante verossímil: as emoções, medos, pensamentos e lembranças são descritos com muita veemência pelo narrador, levando-nos a penetrar à alma angustiada do ladrão. Diversos fragmentos do texto comprovam essa ligação, a qual deixa explícita a participação especial da voz narrativa como se fosse o próprio protagonista. Através do narrador, Ramos mostra detalhes das ações, da insegurança, das emoções e dos desejos do ladrão
Afastou-se, receoso de que alguém o observasse. Desceu a rua, entrou no café da esquina, espiou as horas e teve desejo de tomar uma bebida. Não tinha dinheiro. Doidice beber álcool em semelhante situação. Procurou um níquel no bolso, estremeceu. As mãos estavam frias e molhadas. (RAMOS, 1985, p. 20).
Para relatar com excelência os anseios e os medos do personagem, o autor delineia através do narrador as recordações que o ladrão possui do tempo da infância. No trecho anterior seu discurso é destacado pelas ações do meliante, já no trecho a seguir o discurso é apresentado como se o ladrão estivesse contando uma historia do seu passado:
Durante minutos, lembrou-se da escola do subúrbio e viu-se menino, triste, enfezado. A professora interrogava-o pouco, indiferente. O vizinho mal-encarado, que o espetava com pontas de alfinetes, mais tarde virara soldado. A menina de tranças era linda, falava apertando as pálpebras, escondendo os olhos verdes (RAMOS, 1985, p.24).
Como vimos no trecho anterior, há uma exposição da vida infeliz do moço marcada pela evidenciação de sua carência, da falta de dinheiro, da fome e do corpo maltrapilho. Essas características comprovam que este o ladrão vivia a margem da sociedade, nem mesmo nome tinha, era apenas um homem qualquer. Vejamos outro fragmento:
A tontura devia ser por causa da fome. Também um desgraçado como ele meter-se em semelhante empresa! Tinha capacidade para aquilo? Não tinha. Um ventanista. Que é que sabia fazer? Saltar janelas. Um ventanista apenas. (RAMOS, 1985, p.28)
Segundo Poe (1976), numa narrativa curta, se tratando do conto em geral, o escritor tem o poder de manter a “alma do leitor” sob seu controle, sendo assim, ao ler o texto, o leitor terá as imagens das cenas formadas em sua memória. O narrador deixa o receptor ciente de todos os acontecimentos na trama, até mesmo os mínimos detalhes são mostrados bem de perto. Essa característica é apontada no conto em evidência: “(…) avistou um braço caído fora da cama. Braço de velha rica, de uma gorda nojenta. A mão era papuda e curta, anéis enfeitavam os dedos grossos.” (RAMOS, 1985, p.28).
Portanto essa ligação entre narrador e personagem, demonstra tamanha importância da relação entre literatura e as câmeras cinematográficas, os detalhes são mostrados com mais precisão, como se o narrador estivesse acompanhando o protagonista em todos os momentos e até mesmo possuindo acesso ao seu pensamento, de modo que o leitor fica preso na persistência de imaginar as cenas da mesma forma que o autor idealizou.
A simbiose entre narrador e protagonista é um dos recursos utilizados por Graciliano Ramos para descrever as duas classes que se tornam bem evidentes no desdobrar da narrativa, que são o mundo periférico e a alta sociedade. Contudo, as minúcias do universo exterior são apresentadas no interior da casa de forma metafórica; um item que vale ressaltar é o fato do ladrão recordar sua formação escolar, algo bem incomum para pessoas de sua origem social, memória esta que salienta sua concepção crítica acerca da elite dominante e deixa explícito em suas ações e pensamento o quanto essa casta o enoja.
É importante destacar ainda um excerto da obra, no qual são narradas as características da dona da casa, vista como gorda nojenta com as mãos cheias de anéis, fato que assinala, pelo olhar do narrador, a futilidade e a boa vida que a classe alta possui; Ora, pois, qual a necessidade de dormir carregada de anéis? Percebe-se que, a justaposição de cenas, trata um paralelo entre o ladrão, e opressão de sua classe, e a velha. Enquanto a ela é apresentada como gorda, o ladrão é caracterizado como maltrapilho e faminto: “Ergueu-se, com fome, libertou-se de terrores, procurou orientar-se.” (RAMOS, 1985 p. 31), desde que adentrou a residência ele buscava conciliar o desejo de comer com a sua obrigação de roubar algo de valor.
A narrativa também se encarrega de mostrar a religiosidade de ambas às classes, uma vez que na mansão havia um oratório “abriu uma porta a ferro, acendeu a lâmpada, viu um “oratório”.” (RAMOS, 1985, p. 29, grifos nossos); por outro lado o bandido também possui seus valores, já que ao se deparar com o oratório, ele recua e apesar da tentação de levar as imagens, pensa consigo mesmo que não deve cometer tal profanação. Outro momento em que podemos contemplar a devoção do moço é no seguinte trecho: “Benzeu-se arrepiado. Deus não havia de permitir infelicidade” (RAMOS, 1985, p. 27).
O ladrão é apresentado como um ser humano excluído socialmente, seu desejo de mudar de classe é enorme, pois ao encontrar o dinheiro na carteira seu foco é abrir um café no subúrbio e desaparecer da vida de Gaúcho (outro delinquente que o ensinou a roubar); a fragilidade do moço pode ser contemplada em vários fragmentos da obra, um exemplo disto é quando o narrador descreve sua chegada a casa, “Aproximou-se do morro, as pernas bambas, tremendo como uma criança”. (RAMOS, 1985, p. 23) e outro trecho essencial para tal compreensão é: “(…) viu-se no espelho do guarda-vestidos e achou-se ridículo, agachado, em posição torcida”.
Os momentos finais do conto, o ladrão no quarto iluminado, colocam-nos diante de mais uma carência: ausência feminina em sua vida. A única mulher que ele amou foi a coleguinha da infância. O desejo de continuar ali se torna maior do que a necessidade de ir embora com o dinheiro, o prazer de observar aquela donzela faz com que se esqueça do principal motivo que o levou aquela casa, nem mesmo “o maço de notas, adquirido facilmente, nem lhe dava mais prazer” (RAMOS, 1985, p. 34). A contraposição dessas duas personagens, o ladrão e jovem donzela, traça mais uma realidade cruel: a ausência dos pais na vida dele, pois o narrador se encarrega de relatar apenas sobre os pais da jovem mostrando um dos perfis que diferencia a classe pobre e marginal da fina-flor da sociedade.
O ósculo destrói toda a perspectiva de uma vida melhor do ladrão, pois ao beijar a moça, desperta-a e esta irrompe o silêncio da casa com seu grito de socorro, aqui nesse fragmento o narrador se esquiva do final, ele desliga sua câmera e anuncia “o resto se narra nos papéis da polícia” (RAMOS, 1985, p. 35). O nosso protagonista não alcança seu objetivo e de uma forma infeliz tem seus sonhos dissipados.
Diante do exposto, acreditamos, pois, que mais uma vez, Graciliano Ramos evidenciou a relação entre literatura e sociedade. Sob o olhar preciso de um narrador observador e atento ele desvelou as diferenças entre opressores e oprimidos. Estamos diante de uma obra escrita há algumas décadas, mas que apresenta-nos os conflitos entre as classes sociais existente em nosso país: de um lado um mundo de possibilidades e um muro de aconchego e proteção; do outro, o mundo do crime como alternativa de sobrevivência.
REFERÊNCIAS
BARROS, Maria Luzia Carvalho de. A grande angular em Mario de Andrade, a objetiva de Ramos: uma observação dos contos “O ladrão”, de Mário de Andrade, e “Um ladrão” de Graciliano Ramos. Disponível em <http://www.revistas.usp.br/crioula/article/view/54983>. Acesso em 21/Ago/2015.
PORTO, Luana Teixeira; PORTO, Ana Paula Teixeira. O lugar do conto brasileiro contemporâneo na história da literatura. Disponível em <http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/Ebooks/Web/978-85-397-0198-8/Trabalhos/55.pdf>. Acesso em 21/Ago/2015.
RAMOS, Graciliano. Insônia. Rio de Janeiro/ São Paulo: Record, 1985.
Olá meninas, gostei do texto que fizeram a partir de meu ensaio, bom trabalho.
MuiInto