MPB: “Olho Nu” faz ensaio visual sobre a vida de Ney Matogrosso

Exibido em Brasília, documentário de Joel Pizzini combina imagens e entrevistas saborosas do cantor numa narrativa pouco preocupada com a informação

Ney Matogrosso com o figurino dourado do show 'Inclassificáveis' no documentário "Olho Nu"

Marco Tomazzoni

Na safra de documentários musicais que rende frutos sem parar, surpreende que Ney Matogrosso tenha demorado tanto para ser retratado. Artista único, de história interessantíssima, não faltariam imagens e músicas para se fazer um filme espetacular. Apresentado na noite de sábado (22) na competição do 45º Festival de Brasília , “Olho Nu” cumpre em parte esse desafio.
A ideia partiu de Paulo Mendonça, autor do hit “Sangue Latino” e diretor do Canal Brasil, que entregou o projeto nas mãos de Joel Pizzini, cineasta conhecido por sua vertente experimental – os recentes documentários “Anabazys”, sobre Glauber Rocha (dirigido em conjunto com Paloma Rocha, sua ex-mulher), e “Mr. Sganzerla”, premiado no É Tudo Verdade, são ensaios livres sobre os personagens, o que de fato combina com suas trajetórias.
Estrela desde o início dos anos 1970, quando integrava o grupo Secos & Molhados, Matogrosso tem um infindável material de arquivo, fruto de décadas de imagens acumuladas por emissoras de TV, fãs e do próprio acervo do cantor. Pizzini colocou as mãos em cerca de 400 horas de material bruto e levou quatro anos na montagem, ao lado de Alexandre Gwaz e Joaquim Castro. Árduo, o processo rendeu um corte com quatro horas de duração, depois diminuído, com muito esforço, para três, até se chegar à versão atual de pouco menos de duas.
A linha condutora são entrevistas de Ney para a equipe, sempre em off, que orientam as cenas do passado e as atuais, em que o artista aparece na intimidade, em casa, ou perambulando pelo mato, descalço, sem camisa, em tamanha comunhão com a natureza que ele nem se importa de ter um caramujo deslizando pela boca.
Essa é uma ideia reiterada com insistência na narrativa, a de que o cantor simboliza um guardião das matas, aspecto sobrenatural que encontra representação no macacão dourado do show “Inclassificáveis” – se no espetáculo o figurino excêntrico remetia a um deus inca, aqui, em imagens desfocadas e artísticas, está mais próxima de um espectro ou de um xamã.
A abstração é um procedimento que Pizzini usa como regra, embora, em meio a tanta liberdade, exista o esboço de um documentário mais formal. Matogrosso lembra sua infância migrante de filho de militar e a juventude em Brasília, quando percebeu a veia artística ao cantar num coral e descobrir ser um raro contratenor. “Foi a primeira vez que vi vantagem em ter essa voz, que antes só me atrapalhava”, diz ele, sobre seu timbre agudo.
A figura paterna rígida fez com que Ney desde cedo fosse contra a autoridade – “dei sorte na vida: ser filho de militar, o que de cara já me colocou como transgressor”. O alistamento na Aeronáutica no Rio de Janeiro serviu como desculpa para sair de casa aos 17 anos. Foi nas Forças Armadas que ele viu pela primeira vez um homem beijando o outro, embora tenha sido um padre, mesmo que involuntariamente, que lhe deu a ideia ainda na infância.
No Secos & Molhados, quebrou barreiras, além de trazer o conceito de espetáculo para um show, ao usar maquiagem pesada e requebro inédito para um homem no cenário pop nacional, uma sensualidade que provocou discussão e escandalizou não só seu pai, “mas todos os pais brasileiros”. Era também, segundo ele, uma forma de combater a ditadura. “Eu usava a libido como arma”, afirma o cantor. “Tinha desejo sexual pela plateia, queria trepar com aquela gente toda.”
A saída da banda é descrita rapidamente pela falta de preparo para lidar com as intrigas de dinheiro e fama (“eu era um hippie que só tinha uma bolsa de couro feita por mim mesmo”), até chegar na carreira solo, marcada por uma reinvenção constante de gêneros, de desafios como intérprete, que repeliu uma parcela dos fãs – “parte do público se afastou, achou que eu tinha encaretado, mas outra se aproximou”.
Há declarações saborosíssimas, assim como cenas perdidas no passado: uma entrevista conduzida por Grande Otelo, uma participação curiosa no Chacrinha e duetos com Chico Buarque, Nelson Gonçalves, Toquinho e Caetano Veloso. Só que “Olho Nu” não tem compromisso próprio com informação e cronologia – o espectador depreende da forma que achar melhor o que vê na tela. O documentário quer, antes de tudo, se propor como um ensaio visual e sonoro.
Nisso, muita coisa se perde, de passagens importantes (o relacionamento com Cazuza é praticamente ignorado, assim como o flerte com o cinema) até as próprias músicas. Pizzini tinha tantas imagens que não resistiu em usar ao menos poucos segundos de cada uma. Se veem, então, flashes de shows saborosos que nunca se completam. Ao mesmo tempo, não faltam cenas domésticas de hoje e da obsessão pela natureza.
Esse híbrido entre filme-ensaio e documentário tradicional nunca se resolve. Por mais que tenha sido arrojado e vanguardista nos palcos, Ney Matogrosso nunca foi tão hermético como os outros “biografados”, digamos, por Pizzini. “Olho Nu” funciona como um belo painel sobre a vida do cantor, mas não tira a impressão de que poderia ter sido algo melhor definido.

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