Literatura e história: registros da primeira infância na obra Menino de Engenho, de José Lins do Rego

Larissa Cardoso Beltrão – laricinhabeltrao@hotmail.com
Carla Martins Araújo¹ – Eugênia Costa¹ – Kênia Pereira de Brito¹ – Nielma Araújo ¹ – Larissa Beltrão²

p7-menino-de-engenho-jose-lins-do-regoConsiderando, pois, o horizonte de possibilidades que a leitura de determinada obra literária pode nos proporcionar, bem como as consequências da responsabilidade social exercida pelo artista durante o processo de escrita, colocamos em cena, a partir da relação entre literatura e sociedade, os registros da primeira infância a partir do olhar de José Lins do Rego em uma de suas obras primas.
Fortemente marcada por elementos históricos que relatam fatos da sociedade brasileira, ainda escravocrata, volta-se para a representação da realidade nordestina e suas mazelas. Verificamos, ao longo da narrativa, cenas e fatos que remetem-nos, diretamente, para o período pós abolição da escravidão. Contudo, não obstante encontramos o narrador, que era de origem abastarda, imerso nos problemas dessa gente:
As pobres negras e os moleques sofriam dessa criatura uma escravidão cruel. Ela criava sempre uma negrinha, que dormia aos pés de sua cama, para judiar, para satisfazer os seus prazeres brutais. Vivia a resmungar, a encontrar malfeitos, poeira nos móveis, furtos em coisas da despensa, para pretexto de suas pancadas nas crias da casa. (REGO, 2003, p. 15).

Com caráter que pode ser compreendido, também, como denúncia, a obra está situada entre os relatos históricos e as memórias inventadas do menino Carlinhos, que as conta já depois de adulto. No trecho supracitado, por exemplo, o garoto sai da casa grande e assume as dores da senzala. Ele lança seu olhar e, através de sua descrição precisa, apresenta-nos seu mundo. De um lado as opressões da tia Sinhazinha, do outro a submissão dos negros que, apesar de livres, não tinham para onde ir e, portanto, viviam ainda sob o signo da escravidão.
Menino de Engenho, o primeiro romance da série chamada Ciclo da cana-de-açúcar, é uma obra escrita em tom de memória. Situada entre cenas biográficas da infância do autor que, assim como Carlinhos – o narrador – era neto de um coronel decadente, e sua imaginação perspicaz, nas obras do Ciclo da cana-de-açúcar, legaram ao autor a condição de grande representante do Modernismo brasileiro.
Ao longo da narrativa observamos o desenvolvimento da primeira infância de Carlinhos, narrador e personagem principal, em meio à suas angústias, medos, receios e descobertas. O adjetivo engenho que caracteriza o garoto o qual intitula o romance, aponta tanto para a moenda que é o coração do Santa Rosa, quanto para as primeiras invenções, tão peculiares ao universo infantil.
Temos, pois, a figura de um narrador que ao entrar em contato com a engrenagem da máquina de engenho coloca em pleno funcionamento o mecanismo de sua vida. Em momento de fúria seu pai matara sua mãe e num golpe súbito, com apenas quatro anos de idade, fora expulso do seio materno e, simultaneamente, perdera a segurança inspirada pela figura paterna:
Três dias depois da tragédia levaram-me para o engenho de meu avô materno. Eu ia ficar ali morando com ele. Um mundo novo se abria para mim. Lembro-me da viagem de trem e de uns homens que iam conosco no mesmo carro. O tio Juca que foi me buscar, contava a história afirmando que meu pai estava doido. Todos olhavam para mim com um grande pesar. (REGO, 2003, p. 8. Grifos nossos).

As portas do novo mundo foram abertas pela tia Maria que cuidou do menino de Clarisse como se fosse dela. Depois de recepcionado pela família fora brincar os moleques da fazenda e apesar da desconfiança inicial, no outro dia já eram amigos, tomavam leite ao pé da vaca, banhavam no rio e estavam sempre brincando.
Ao adentrar o Santa Rosa, um universo de possibilidades se revela a Carlinhos que, distante do controle rigoroso de seus pais, passa a frequentar a senzala e descobre quão grande é o espaço existente entre a casa-grande e o mundo dos moleques.

Com uns dias mais eu já estava senhor de minha vida nova. Tinham chegado para passar um tempo no engenho uns meus primos, mais velhos do que eu: dois meninos e uma menina. Agora não era só com os moleques que me acharia. Meus dois primos bem afoitos sabiam nadar, montar a cavalo no osso, comiam tudo e nada lhes fazia mal. Com eles eu fui aos banhos proibidos, os de meio-dia, com a água do poço escaldando. (REGO, 2003, p. 14).

Como o Tio Juca sugeriu, em pouco tempo o menino da cidade fora tornando-se matuto e entre uma agitação e outra ganha o mundo, faz do engenho seu universo e assim o narrador, já adulto, Carlos de Melo, reconstrói sua infância a partir das aventuras de Carlinhos.
Entre o real e o fantástico, a imaginação figura como um elemento essencial à vida infantil, uma vez que criar fantasias torna-se algo fundamental no processo de transposição da realidade. De modo que, os brinquedos, e brincadeiras, sem imaginação, são elementos mortos no mundo das crianças, principalmente no caso do moleques do sertão, que precisavam criar seus meios de distração.
E no caso do romance, são as alternativas propostas pela invenção, o engenho da memória, que dão vida a todo tipo de brincadeira. Muitas vezes, os moleques do sertão valiam-se de fatos reais para criarem seus divertimentos. Exemplo de oscilação entre real e imaginário, em Menino de Engenho, é a passagem na qual o cangaceiro Antônio Silvino, visita ao engenho Santa Rosa:
Para os meninos a presença de Antônio Silvino era como se fosse um rei de nossas histórias, que nos marcasse uma visita. Um dos nossos brinquedos mais preferidos era até fingirmos de bando de cangaceiros, com espada de pau e cacetes no ombro, e o mais forte de nós se fazendo de Antônio Silvino. (REGO, 2003, p. 18).

Nesse sentido, conforme assinala Roger Chartier (1995) no que diz respeito à literatura como espaço de representação cultural, flagramos, como presença forte na obra, a (re) construção de imagens que tratam de aspectos da cultura local. Durante a passagem do famoso cangaceiro, por exemplo, traz para dentro do romance a temática do cangaço, forte traço da região.
Considerando, pois, que a obra literária é, em alguns casos, um reflexo da visão social e política do artista, uma vez que nela está refletida a visão-de-mundo do autor, que emerge a partir de sua ideologia, temos em Menino de Engenho uma obra que oscila entre o real e a fantasia, com vistas a atender os anseios históricos de quem escreve, mas ao mesmo tempo sem desmerecer as possibilidades da voz que conta, nesse caso Carlos de Melo.
Outra passagem que merece destaque é a passagem do menino à vida adulta, ainda que de forma precoce. Carlinhos que apesar de tudo dizia-se triste: “Era um menino triste. Gostava de saltar com meus primos e fazer tudo que eles faziam. Metia-me com os moleques por toda parte. Mas no fundo era um menino triste.” (p. 59).Envolvido pela magia da senzala, conheceu muito cedo os prazeres da vida sexual e, como era comum entre os senhores de engenho e seus descendentes, seus desejos foram realizados por uma mulher mundana, a Zefa Cajá. E por essa ocasião experimentou, simultaneamente, os dessabores dessa experiência: as doenças do mundo, hoje chamadas doenças sexualmente transmissíveis. Desse modo, aos poucos o menino de engenho deixa sua condição de inocente e sagrava-se libertino:
Agora o engenho oferecia-me amor por toda a parte: na senzala, na beira do rio, nas casas de palha. Os moleques levavam-me para as visitas por debaixo dos matos, esperando a vez de cada um. Na casa grande os homens achavam graça de tanta libertinagem. (REGO, 2003, p. 100).

Distante da tia Maria que depois de casada fora embora do Santa Rosa, aos doze anos de idade Carlinhos despediu do universo pueril, abandonou seu olhar de criança e sua capacidade de ver o mundo como um engenho de brinquedos e brincadeiras. Em suas palavras “O sexo vestira calças compridas no seu Carlinhos” (p. 101). O garoto, agora entre luxúrias, enxergava o mundo pela óptica de seus desejos carnais.
Alguns meses depois, como de práxis, o garoto foi enviado para o colégio e ele estava certo de que, mais uma vez, um novo mundo se abriria. E o menino de engenho, menino perdido, ao comparar-se com o Sérgio, personagem da obra O Ateneu, de Raul Pompéia, conclui que “Levava para o colégio um corpo sacudido pelas paixões de homem feito e uma alma mais velha que o meu corpo” (p. 104).
Diante do exposto, acreditamos, pois, que arte e sociedade mantêm uma estreita relação, e que a produção literária absorve e expressa as condições do contexto em que é produzida, permanecendo, assim, sujeita às variações que nele ocorrem. Tais mudanças geram percepções e sentimentos entre um povo e outro, além das diferenças de espaço. O contexto vivenciado pela personagem Sérgio destacada pelo narrador, por exemplo, leva-nos a compreender o porquê de ser visto como alguém “com uma alma de anjo e cheirando a virgindade” (p. 104).
Acreditamos, pois, que a narrativa Menino de Engenho apresenta um comprometimento com a humanidade e com os aspectos sociais e políticos da época, o que, segundo Adorno (2003) revela a responsabilidade social do artista. Além de retratar a história de seu povo, a obra é marcada por um realismo social que não se limita aos fatos históricos, uma vez que transita, simultaneamente, pelo terreno do imaginário.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOSI, Alfredo. Poesia e resistência. In: _____. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 163-227.
CHARTIER, Roger. In: _____. Cultura popular: revisitando um conceito historiográfico. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, n . 16, 1995, p.179-192.
REGO, José Lins do. Menino de engenho. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003.

 

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