Literatura & Direitos Sociais:Insubordinação à ordem: A rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade, e a resistência pela poesia
Larissa Cardoso Beltrão – laricinhabeltrao@hotmail.com
Considerando a estreita relação entre literatura e história e, mais ainda, que a realidade social de um país ou de uma coletividade pode ser retratada de forma bastante verossímil em textos literários, colocamos em foco a análise da obra A rosa do povo, que revestida de preocupação social, surge como um mecanismo de resistência.
Em meio ao cenário fragmentado da década de 1940, alguns escritores, dentre os quais, por ora, destacaremos o poeta Carlos Drummond de Andrade, passaram, então, a combater a ordem vigente com a palavra, a maior arma da qual dispunham.
A rosa do povo, publicada em 1945, é considerada como uma obra-chave dentro da produção poética drummondiana. Seus poemas foram escritos durante os anos da 2ª Guerra Mundial e da Ditadura de Getúlio Vargas. Assim, nos poemas do livro, verificamos referências aos acontecimentos daquela época, uma vez que refletem a ideologia revolucionária do poeta e manifestam sua revolta em meio ao caos da década de 1940.
Com o intuito de apresentar a poesia como lugar de resistência, faremos uma breve análise do poema “Nosso tempo”, um dos mais significativos e expressivos da poética de Drummond. Composto por oito cantos de versos irregulares no qual suas imagens poéticas remete-nos à realidade vivenciada na época.
O poeta retrata com uma precisão ímpar a vida coisificada das massas urbanas:
Este é tempo de partido, tempo de homens partidos.
Em vão percorremos volumes, viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra (Drummond, 1945, p. 25).
A palavra “partido”, presente no verso que abre o poema, é o passo para uma possível ambivalência: por um lado, há uma conexão com a política, opção ideológica obrigatória, pois o citadino da década de 40 não poderia se furtar a uma escolha partidária. Por outro lado, Drummond apresenta a mutilação do ser, o homem do “tempo de partido” é um homem marcado pela guerra e, sobretudo, esmagado por uma classe opressora que destrói o corpo e sua própria consciência.
Como podemos verificar nos versos da segunda estrofe, o poeta tenta expressar o sentimento coletivo “percorremos/viajamos”. A tensão gerada pela perspectiva de mudança da margem a uma rua cheia de tensão, resultante da crise da ordem burguesa, “meu nome é tumulto”, grita o eu lírico em busca de uma solução para a real situação do país:
Visito os fatos, não te encontro. Onde te ocultas, precária síntese, penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimo, nenhum beijo sobe ao ombro para contar-me a cidade dos homens completos.
Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas! (Drummond, 1945, p. 25).
Nas estrofes supracitadas, o eu lírico, munido de sentimento de esperança, tenta silenciar perante os acontecimentos, mas, logo em seguida, conscientiza-se de sua responsabilidade social. O eu lírico contra a ordem do mundo em que está inserido, negando-se, sobretudo, a se tornar um ser reificado: “mas eu não sou as coisas”. Ele rebela-se contra a coisificação à qual o homem está submetido e suas palavras, por vezes sufocadas, “irritadas, enérgicas”, sentem a necessidade de explodirem:
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal, são roucas e duras, irritadas, enérgicas, comprimidas há tanto tempo, perderam o sentido, apenas querem explodir (Drummond, 1945, p. 25-26).
No segundo canto, o processo de mutilação do ser é abordado por Drummond logo nos primeiros versos:
Este é tempo de divisas, tempo de gente cortada.
De mãos viajando sem braços, obscenos gestos avulsos (Drummond, 1945, p. 26).
O eu lírico faz alusão às muitas pessoas que são vítimas da modernização e do processo de mecanização e que, em função do capitalismo, assumem a condição de máquinas. As palavras de Drummond revelam toda a indignação de um homem que, assim como as bombas, deseja explodir e trazer à tona os segredos que poderiam representar o começo de um tempo de mudanças.
A responsabilidade social com a qual o poeta se comprometeu pode ser observada à medida que os elementos individuais de sua poesia vão assumindo uma dimensão social. Drummond reveste sua poética dos acontecimentos que assolavam o contexto histórico-cultural da época e afligiam toda humanidade: “Guerra, verdade, flores?”, mais uma vez as flores aparecem na poética de Drummond como o símbolo da esperança de que as guerras cessem, dando, assim, origem há um tempo novo.
No canto seguinte, confirmamos a imersão do poeta e também do eu lírico em um sentimento de revolta, face aos acontecimentos da época, e os versos nos remetem a um tempo de homens mutilados, um tempo de dor, de homens partidos. O eu lírico faz referência aos homens inseridos em um espaço social extremamente desolador e angustiante. À medida que Drummond começa a responder às necessidades coletivas, sua produção poética deve ser vista como meio de expressão social. Nos versos do poema em questão, comprovamos que o poeta pede, desesperadamente, que as pessoas se manifestem em relação aos acontecimentos da época, que falem sobre os alejões morais aos quais estão submetidos no “tempo de muletas”.
O poeta, através de um grito rebelde, solicita, desesperadamente, que o povo não se cale. Entretanto, no IV canto, ele reconhece que o silêncio, no contexto da época, devia ser entendido como um imperativo de sobrevivência:
É tempo de meio silêncio, de boca gelada e murmúrio, palavra indireta, aviso na esquina. Tempo de cinco sentidos num só. O espião janta conosco (DRUMMOND, 1945, p. 27-28).
A consciência do momento histórico faz o poeta oscilar, rapidamente, do incentivo ao esporo, à necessidade do silêncio. No verso “O espião janta conosco”, notamos, com clareza, a facilidade que o poeta tem em transformar os acontecimentos da época em poesia, reportando-nos, assim, para o contexto da época. Um período no qual o perigo morava em todos os lugares e as cidades estavam repletas de espiões e informantes. Era um tempo de pessoas neutras e de homens reificados que aceitavam a condição de petrificados por uma questão de sobrevivência.
A condição de coisa assumida pelo homem, ainda que considerada pelo poeta como necessária à sobrevivência, assolava a sua consciência. Assim, para Drummond, conforme podemos visualizar ao longo de seus versos, a sociedade capitalista escraviza e massacra o homem pela rotina de seus empregos. O citadino é condicionado, segundo o poeta, a uma repetição alienada e exaustiva dos mesmos gestos: “come braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo de comida”. Homens e objetos, no universo materialista, são todos nivelados.
Nas estrofes do V canto, o homem é apresentado como um ser reificado, “homem depois de homem, mulher, homem, mulher, roupa homem, roupa, cigarro, chapéu, roupa, roupa, roupa”. O homem, como podemos notar, é equiparado a objetos. Essa situação é resultante da alienação imposta pelo sistema capitalista que, infelizmente, ainda predomina em nossa sociedade. O homem volta para casa com seus gestos mecânicos, come a mesma comida, envolto nos mesmos movimentos reserva um horário, aparentemente o mesmo todo dia, à leitura de jornais, ou outra programação qualquer, que também nos é sugerida pelo poeta: “Escuta a pequena hora noturna de compensação, leituras, apelo ao cassino, passeio na praia” e, por fim, o despir, o deitar também é considerado pelo poeta como um ritual.
No decorrer do poema, verificamos toda indignação do poeta em relação aos homens que julgam estar em uma cidade acolhedora, lugar humano, quando, na verdade, encontram-se soterrados, vivendo de forma quase vegetativa. Há, pois, na vertente social da poesia de Drummond a presença de uma ira redentora, que situa claramente seu empenho participativo, sua adesão ao espectro político e seu sentimento de esperança em relação ao desabrochar do mundo novo. Trata-se de uma vertente em que o poeta explicita aos seus leitores uma preocupação aguda com os variados problemas que assolam o homem moderno, conferindo à poesia um novo espaço, um lugar de resistência aos valores da ordem vigente.
Referências:
1. Corpus literário para análise:
ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. São Paulo: Círculo do livro, 1945.
2. Obras de apoio teórico-crítico:
ADORNO, Theodor. Palestra sobre lírica e sociedade. In: _____. Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003. p. 65-89.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In: _____. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970. p. 93-122.
SECCHIN, Antônio Carlos. Poesia e desordem. In: _____. Poesia e desordem: escritos sobre poesia e alguma prosa. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p. 17-20.