Kalungas recebem promotor e juiz
Atendimentos de cidadania
Demandas que muitas vezes esperam de 03 a 04 anos para serem registradas, não apenas foram oficializadas como foram resolvidas em menos de 40 minutos. Entre elas, sete sentenças para o reconhecimento de paternidade, expedição de mais de 150 documentos como certidões de nascimento, carteiras de identidade e títulos eleitorais, além do combate ao garimpo ilegal.
Marília Assunção*
Tudo ocorreu na sexta-feira (8/7) em uma ação de cidadania nos vãos das serras da comunidade Kalunga que vive entre os municípios de Monte Alegre, Teresina de Goiás e Cavalcante, no Nordeste Goiano. A estimativa é de que entre 370 e 400 pessoas tenham participado. O evento foi resultado de uma ação proposta pelo Ministério Público de Goiás (MP-GO) em parceria com o Poder Judiciário, Polícia Civil, cartórios de Registro Civil e Eleitoral de Campos Belos e Monte Alegre, da qual também participou a prefeitura. A iniciativa partiu do promotor de Justiça de Campos Belos, André Luís Ribeiro Duarte, que contou com o apoio do colega de São Domingos, Douglas Roberto Ribeiro de M. Chegury. O desafio de levar cidadania e ainda fiscalizar a chegada de serviços públicos essenciais e combater ilegalidades, foi abraçado pelo juiz Fernando Oliveira Samuel, que responde pelas comarcas de Campos Belos e São Domingos, e pelo delegado de Campos Belos, Gil Bathaus, que responde também por Monte Alegre.As autoridades trocaram os gabinetes na cidade e se dedicaram a levar cidadania indo elas mesmas até os moradores dos ermos da reserva, considerada patrimônio histórico cultural de Goiás por ser formada, há mais de duzentos anos, por descendentes de escravos. O comboio percorreu 35 quilômetros de asfalto e cerca de 40 quilômetros de estradas vicinais íngremes e difíceis, até o Riachão, uma área kalunga próxima do Rio Paranã, onde o atendimento aconteceu improvisado em uma escola e um galpão de madeirite.Ambos kalungas, dias antes, o vereador Tico e a advogada Doraildes Ferreira Gaspio, representante da OAB, mobilizaram os moradores da reserva em Monte Alegre, avisando sobre os serviços que seriam oferecidos durante a manhã e parte da tarde de sexta-feira.“Tem gente aqui sem energia, sem escola e sem estradas até os dias de hoje”, informou uma das matriarcas mais antigas, Procópia dos Santos Rosa, diante do promotor e do juiz. Ela exaltou a inusitada presença de ambos entre os kalungas, os quais se enfileiraram para consultas ao promotor, ao juiz, audiências, na obtenção dos documentos e para exames preventivos de câncer. Salas de aula abrigaram macas para os exames médicos, computador e máquina fotográfica para que ficasse faltando apenas a impressão de documentos como carteiras de identidade e certidões que não poderiam ser entregues na hora.O jovem Adenilson Moreira Santiago, 20 anos, conseguiu dois atendimentos. Registrado por engano com um nome feminino, ele teve apoio do promotor e do juiz para fazer a alteração do registro de nascimento e ainda pode, pela primeira vez, ver o nome do pai, Severino da Silva Santiago, escrito nos documentos novos que tirou. “Fui no cartório há uns 4 anos para reconhecer ele (Adenilson) como meu filho, mas nunca que dava certo”, contava Severino após assistir, cerca de 40 minutos depois, à lavratura da sentença pelo juiz que resolveu de vez o reconhecimento de paternidade que demorou duas décadas.“Foi um trabalho fora dos nossos gabinetes para resolver e efetivar a cidadania entre os kalungas”, afirmou o promotor André. “Fiquei surpreso com o número de pessoas, vindas de locais distantes para ter atendimentos essenciais”, disse o juiz Fernando.Pelo MP, foram colhidos 22 termos de declaração para assuntos diversos e três para exames de DNA de verificação de paternidade, mais 4 retificações do ano de nascimento. O juiz proferiu sete sentenças a maioria das quais, na estimativa dele, demorariam mais de sete meses para sair. O Cartório de Registro Civil fez 10 retificações de nascimento, 2 certidões de nascimento e expediu 38 segundas-vias de certidões de nascimento. Também foram expedidas entre 55 e 60 carteiras de identidade, e mais de 50 títulos de eleitor. Dezenas de mulheres aguardaram para a realização de exames para prevenção de câncer de útero.
Audiência pública: precariedades apontadasÀ tarde, com o fim do atendimento para a retirada de documentação e exames médicos, o promotor e o juiz ainda realizaram uma audiência pública para explicar que, como autoridades da Justiça, ambos precisavam saber as necessidades gerais da comunidade para tomar as medidas junto aos responsáveis por sanar tais carências. O juiz ficou admirado ao ser informado de que não há posto médico na reserva e que a última visita de um médico à região, de difícil acesso para a comunidade, foi em setembro de 2010, a despeito de casos frequentes de doença de Chagas, calazar, hepatite B, leishmaniose, câncer de útero e mama, e até um caso de HIV entre os calungas. “Dentista nunca veio e grávidas também não conseguem fazer pré-natal ”, continuaram os moradores.Homens e mulheres calungas também denunciaram que não há transporte escolar para as crianças que caminham às vezes 12 quilômetros por trieiros e estradas ruins até as escolas dentro da reserva que tem mais de 230 mil hectares de Cerrado. Houve relatos de que, embora computadores e outros equipamentos tenham chegado, minilaboratórios de informática não são montados nas escolas calungas por falta de espaço e, ainda, que salas de aula são improvisadas como dormitório para professores que não têm onde pernoitar na região. Foi relatada também a falta de energia elétrica ou de estradas transitáveis, ou ambas, nas regiões calungas de Carolina, São Pedro, Curral da Taboca, Areia, Sucuri e Contenda. “Nestes, segundo os moradores, doentes só saem transportados em ’leiteira de couro’ (maca improvisada)”, anotou o juiz na ata da audiência.
PrisãoDurante a ação de cidadania, a equipe da Polícia Civil, chefiada pelo delegado Gil Bathaus, e acompanhada pelo promotor de São Domingos, Douglas Roberto Ribeiro Chegury, foi informada sobre a presença de mais de 18 balsas e dragas para garimpo e remoção de areia no Rio Paranã, dentro da área kalunga. Alguns equipamentos chegaram a ser vistos pela equipe durante uma vistoria no início da manhã, mas foi por volta das 12 horas que os policiais conseguiram flagrar um grupo de garimpeiros, dos quais, dois conseguiram fugir de barco, mas os demais, seis, foram presos em flagrante.Os policiais encontraram com o grupo um frasco contendo mercúrio (metal na forma pura, altamente contaminante), além de motores de barco, vários equipamentos destinados à dragagem da areia do leito do Paranã e até roupas de mergulho.O grupo foi preso em flagrante por crime ambiental e formação de quadrilha, e levado para a Delegacia de Polícia de Campos Belos. *(Assessoria de Comunicação do MP-GO)