Gabriela cravo e canela, de Jorge Amado, uma crônica de costumes: Do coronelismo à modernidade do século XX

“Era bom dormir nos braços de um homem, sentir o estremecimento do corpo, a boca a morder, num suspiro morrer. Que seu Nacib se zangasse, ficasse com raiva, sendo casado, isso entendia. Havia uma lei, não era permitido. Só o homem tinha direito, a mulher não tinha. Ela sabia, mas como resistir? Tinha vontade.”Larissa Cardoso Beltrão – laricinhabeltrao@hotmail.com

Debora VELOSO¹
Heryka RODRIGUES¹
Gleiciany F.dos SANTOS¹
Silmara Tzotzakis MUNHOZ¹
Renato ALMEIDA¹
Vinicius SOARES
Larissa BELTRÃO²

O romance Gabriela, Cravo e Canela foi escrito pelo, já consagrado, escritor baiano Jorge Amado. Sendo uma obra fortemente marcada por representar o processo de transformação social pelo qual o país estava passando, e de modo mais específico a cidade de Ilhéus, localizada no sul do estado da Bahia. Ambientada no período que vai de 1889 a 1930 pode ser considerada uma crítica acentuada à sociedade baiana da época, perpassada pelo coronelismo e os resquícios da exploração vivenciada no, chamado, ciclo do cacau.
Jorge Amado nasceu no dia 10 de agosto de 1912, na fazenda Auricídia, em Ferradas, distrito de Itabuna – Bahia, filho de João Amado de Faria e D. Eulália Leal, escreveu vários romances como: O País do Carnaval, em 1931; Cacau, em 1933; Capitães da Areia, em 1936; Tieta do agreste e tantos outros, porém é Gabriela, Cravo e Canela, uma crônica de uma cidade do interior, escrita em 1958, que garante ao autor uma relação de envolvimento com o leitor. A fim de tratar dos problemas legados pela presença marcante do coronelismo, Gabriela, uma retirante nordestina, sai da margem e passa a ocupar o centro e uma obra que tratará de uma série de temáticas constantes, mas que, até então, estavam ocultas: o autoritarismo masculino e os crimes em nome da honra, prostituição, adultério, o advento da república e os primeiros passos em direção às conquistas femininas.
Na medida em que apresenta as personagens e núcleos do romance, o autor convida-nos, enquanto leitores, a uma reflexão profunda acerca das tensões vivenciadas na época. Gabriela, a retirante, é apresentada no mesmo dia em que D. Sinhazinha é assassinada por seu marido, coronel Jesuíno, em crime honra. Casada com um homem estúpido e grosso, que a tratava como máquina, ela sente-se fortemente atraída pelo dentista recém-chegado da capital, drº Osmundo.
Depois de ser alertado sobre a possível traição, coronel Jesuíno, mesmo sendo um frequentador assíduo do Bataclã, o prostibulo da cidade, e, portanto, adúltero, achou-se no dever de matar sua esposa e o amante. Ressaltamos, nesse sentido, que esses crimes eram vistos como um direito do marido traído que, até então, não sofria penalidade alguma. Matavam sob a afirmação de estarem fazendo o que deveria ser feito.
Sobre essa relação, obra literária e sociedade, Bakhtin (1997, p.184) afirma que “Devemos sentir na obra a resistência viva à realidade de acontecimento do existir; onde não existe essa resistência, onde não existe saída para o acontecimento axiológico do mundo, a obra é uma invenção e em termos artísticos jamais convence.” Não obstante, reconhecemos na obra Gabriela Cravo e Canela a literatura como espaço de resistência, uma vez que Jorge Amado a partir de sua condição privilegiada, a de escritor, trata das mazelas de uma sociedade fortemente marcada pelo medo.
O campo literário, nesse contexto, também estava passando por uma série de transformações. Ao escritor passou a ser legado um caráter representativo, e ciente de sua responsabilidade social, enquanto artista, trouxe para dentro do romance, e também da poesia, os assuntos que incomodavam os leitores da época. Sobre este processo, Antônio Candido (2006), em sua obra Literatura e sociedade, “a literatura é pois um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a”. (CANDIDO, 2006, p. 84).
Assim, o período demarcado entre 1901 a 2000, reconhecido por seus avanços e conquistas, considerado o século das inovações e liberdade de expressão, está fortemente marcado pelo acesso à fala, uma vez que muitos escritores puderam falar de modo mais aberto, sobre a realidade que lhes era peculiar, fazendo que seu grito ecoasse e, através de relatos e personagens fictícios, alcançar a redenção e libertação de homens e mulheres reais.
Ademais, sobre a relação entre as formas de expressão artística e sociedade Bakhtin (1997) postula o seguinte:
O mundo da visão artística é um mundo organizado, ordenado e acabado independentemente do antedado e do sentido em torno de um homem dado como seu ambiente axiológico: vimos como em torno dele se tornam artisticamente significativos e concretos os elementos e todas as relações – de espaço, tempo e sentido. (BAKHTIN, 1997, p.173).
Essa axiologia, a que se refere Bakhtin, é o termo utilizado como valor ao ambiente do homem e da mulher, ou até mesmo às situações vividas dentro de uma história, do qual o autor utiliza-se para aproximar-se ainda mais dos fatos e assim atentar o seu leitor à dramaticidade do momento, deixando um pouco de comoção que faz despertar o emocional dos outros personagens e do próprio leitor, de modo que possa reconhecer-se nas personagens apresentadas.
Nesse sentido, os anseios vivenciados na ficção, podem ser reconhecidos na realidade, como é o caso da luta travada pela menina Malvina, com o intuito de tomar as asas do próprio destino. Filha de coronel, desde muito nova ela mostrou-se visionária. Sabedora de que seu pai frequentava o Bataclã e consciente de que sua mãe além de ser usada levava constantes surras pelo fato de não ter engravidado de um menino, Malvina passou a lutar por sua liberdade. Ainda adolescente, decidiu que não aceitaria casar-se com um noivo arranjando por seu pai.
Ao longo do romance, ela trava uma série de conflitos, tantos internos quanto externos, mas ao final, a vitória da menina Malvina representa a vitória do público feminino que a partir de então recebeu sinais de que daí para frente teria condições de exercer o direito de escolha. E de acordo com Bakhtin (1997, p.175) “O autor se torna próximo da personagem apenas onde não há pureza da autoconsciência axiológica, onde, sob o poder da consciência do outro, ele toma consciência de si no outro dotado de autoridade.”,
É importante destacar ainda que, Jorge Amado consegue retratar com bastante precisão os anseios do povo de sua da região natal, trazendo para a ficção desejos e situações reais. Construída em torno de uma procissão para São Sebastião, padroeiro da cidade de Ilhéus, o romance é envolto por uma série de conflitos, dentre os quais destacamos o forte embate sobre a possibilidade da participação, ou não, das quengas do Bataclã, neste evento de ordem religiosa.
Temos nesse contexto, uma crítica acentuada às tradições religiosas vigentes na sociedade da época. De um lado a sociedade patriarcal representada por d. Doroteia, segundo ela, esteio da moral e dos bons costumes das famílias de Ilhéus. Do outro, Maria Machadão e suas damas, lutando pelo direito de sair da margem com destino ao centro.
Em contraposição aos anseios das prostitutas do Bataclã, Gabriela tem a oportunidade de estar no centro da sociedade, mas recusa. Depois de estabelecer-se como cozinheira do truco Nacib, ela cai em seus encantos. De beleza exuberante, a retirante chamava a atenção por onde quer passasse.
Apaixonado por Gabriela, Nacib decidiu tomá-la por esposa. Envolta na possibilidade de frequentar a alta sociedade de Ilhéus, Gabriela, agora uma dama, foi tomada por uma aversão à utilização de roupa de ceda, de joias, e sapato de salto. Envolta numa atmosfera que envolvia fatores internos e externos, ela era a porta voz da sabedoria popular.
Segundo, CANDIDO:
[…] quando investigamos tais fatores e tentamos distingui-los, percebemos, na medida em que é possível, que os mais plenamente significativos são os internos, que costeiam as zonas indefiníveis da criação, além das quais, intacto e inabordável, persiste o mistério. Há, todavia os externos,… dependendo de um ponto de vista mais sociológico do que estético; mas necessários, senão à sondagem profunda das obras e dos criadores, pelo menos à compreensão das correntes, períodos, constantes estéticas. (CANDIDO, 2006, p.83, grifos do autor).
Ademais, Gabriela surge como uma personagem envolta em uma atmosfera simples. De personalidade simples, mas forte, ela demonstra não se importar com o olhar do outro. Pega em adultério, com Tonico Bastos, ela deixa Nacib sem olhar para trás, sem se preocupar com bens ou dinheiro. Gabriela sai do casamento do mesmo modo que chegou.
Já a atitude de Nacib, sua sobriedade em não valer-se do crime de honra para redimir-se perante à sociedade, trouxe para dentro do romance as possiblidades de uma nova sociedade que emergia ao longo da década de 20, em uma Ilhéus que via-se, nessa época, diante das conquistas trazidas pela modernidade.
A instalação do jornal diário e a repercussão das notícias apresentadas de modo imparcial colocavam em cena a cidade de ressurgia. A eleição de Mundinho Falcão e seu modo destemido de enfrentar Ramiro Bastos colocam fim ao coronelismo que, durante tanto tempo, perpetuara na região. Além de derrotar o adversário politicamente, Mundinho, apesar de todas a tentativas fracassadas do coronel de afastá-lo de sua neta, casa-se com Jerusa, reforçando, no centro do romance, a ideia de que a mulher, a partir de então, tomara as rédeas de sua vida, retirando da família o direito de escolher com quem se casaria.
Além disso, a condenação do coronel Jesuíno dá ao desfecho do romance o caráter de renovação. E a percepção da sociedade moderna que emergia é dada pelo final de Gabriela e Nacib. Este, agora sócio de Mundinho Falcão, acaba recontratando a moça. Que, como no início, passa de cozinheira a amante. Mas agora, não de modo oficial, os dois apenas moravam juntos.
Diante do exposto, podemos asseverar que a obra Gabriela, de Jorge Amado, é uma forte crítica aos costumes da época. Marcado, principalmente, pelas injustiças sofridas pelo público feminino, o romance traz para o centro da obra literária personagens periféricas, anunciando as mudanças provocadas pelo advento da modernidade no Brasil, do início do século XX.
¹ Graduandos do 4º ano do Curso de Letras. UEG/unidade Campos Belos.
² Professora Orientadora.

REFERÊNCIAS
AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela. São Paulo: Companhia das letras, 2008. 415p
BAKHTIN, Mikhail. O problema do autor. In.: ______. Estética da criação verbal. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 2ªed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p.173-192.
CANDIDO, Antonio. O escritor e o público. In.: ______. Literatura e sociedade. 9ªed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006. p.83-98.

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