FRIEZA E CRUELDADE – ‘Só escutei o barulho e senti meu corpo queimando’, diz homem em situação de rua incendiado por menor em live.
Ludierley Satyro José, de 46 anos, com dificuldades de falar, respirar e se movimentar, está hospitalizado. Imagens do crime no Pechincha, Zona Oeste do Rio, foram transmitidas ao vivo por app.
Por Rafael Nascimento*
“Eu só escutei o barulho e senti todo o meu corpo queimando. Quando vi, eu estava todo em chamas. Apavorei, comecei a pedir ajuda, [mas] não tinha ninguém na rua. Tirei toda roupa e fiquei pelado para apagar o fogo.”
O relato é do auxiliar de serviços gerais Ludierley Satyro José, de 46 anos. Entre a noite de terça-feira (18) e a madrugada de quarta (19), ele foi atacado por um adolescente de 17 anos com dois coquetéis molotov e teve quase 60% do corpo queimado.
O homem dormia em uma calçada no bairro do Pechincha, na Zona Oeste do Rio. O crime foi filmado e transmitido ao vivo por uma rede social.
Ludierley falou ao g1 com exclusividade, no Centro de Tratamento de Queimados (CTQ), no Hospital do Andaraí, onde está internado em um complexo tratamento de saúde.
Ludierley vive em situação de rua há alguns anos. Com dificuldades de falar, respirar e se movimentar, ele relatou o que lembra do ataque. Veja no vídeo.
Ele dormia de bruços quando foi queimado. Por isso, de acordo com os médicos, as queimaduras estão principalmente na parte de trás do corpo.
“Pouco depois da uma da madrugada, eu escutei um barulho e já senti o meu corpo queimando. Quando vi, eu estava em chamas. Apavorei, comecei a pedir ajuda, [mas] não tinha ninguém na rua. Tirei toda roupa e fiquei pelado na rua para apagar o fogo. Fui lá no posto [de gasolina] pedir ajuda e o rapaz me ajudou. Me jogaram um coquetel molotov. Eu ainda vi os pedaços de vidro. Era coquetel molotov”, disse o homem.
Militar do Exército e adolescente envolvidos na trama
As cenas do ataque foram transmitidas ao vivo pelo Discord, um aplicativo de troca de mensagens muito popular entre jovens, que também é usado para prática e disseminação de conteúdos perturbadores e propagação de ódio.
Horas depois do crime, o vídeo começou a circular e chegou até a Delegacia da Criança e Adolescente Vítima (DCAV), que acionou o Laboratório de Operações Cibernéticas do Ministério da Justiça.
Ao mesmo tempo em que os investigadores seguiam o rastro digital do vídeo, a avó e a irmã do jovem perceberam que era ele quem aparecia na imagem e procuraram a Delegacia do Tanque.
Os policiais apreenderam o adolescente na manhã da quinta (20). O crime aconteceu a menos de 600 metros da casa dele.
No dia seguinte, o homem que filmou o adolescente ateando fogo em Ludierley foi preso. Miguel Felipe dos Santos Guimarães da Silva é um militar do Exército de 20 anos. Segundo as investigações, ele planejou o ataque, executado pelo menor.

A polícia encontrou conteúdo de abuso sexual infantil nos celulares de ambos, de Miguel e do adolescente.
As investigações iniciais indicam que o ataque foi motivado por um desafio.
“Ele seria movido por um desafio de se vangloriar perante os outros participantes [da rede social], e ele teria recebido um valor em torno de R$ 2 mil por um indivíduo ainda não identificado”, disse o delegado Cristiano Maia, responsável pelo caso.
“Poucas vezes eu vi um detido com tamanha frieza e crueldade porque a vítima, o morador de rua, estava dormindo, e [o ataque foi] sem motivo algum, dois indivíduos, apenas pra mostrar que são capazes de fazer essa barbaridade, fazem”, afirmou o delegado.
“A mente dessa pessoa não é uma mente boa. Com certeza ela tem estudo, uma casa boa, vive bem e entrou nessa não sei como. Para fazer isso, a pessoa precisa ter uma mente ruim. Eu sinto muita tristeza. Ele poderia estar assistindo à televisão, comendo uma pizza, tomando uma Coca-Cola, e a pessoa ir para tirar uma vida, por causa de um prêmio? Mil reais? Não compensa”, disse Maia.
Filho traumatizado
A balconista Beatriz Silva de Oliveira, que está separada de Ludierley, contou ao g1 que foi o filho de 7 anos do casal soube primeiro do que tinha acontecido com o pai. Segundo ela, o menino está traumatizado.
“O meu filho estava assistindo ao jornal e ouviu o nome do pai. Meu filho, quando viu, ficou abatido. No outro dia, quando foi à escola, ele ficou sem comer, ficou com medo de dormir e sonhar com aquilo que viu na televisão”, disse Beatriz.
“Uma tia minha que é terapeuta pediu para ele desenhar o que representava o pai. E o desenho foi um rapaz tacando fogo no pai dele. É muito triste, não deve acontecer. É desumano”, afirmou.

“As pessoas estão fazendo com as outras como se estivessem matando uma barata: um bicho, um inseto. Isso é desumano. Isso causa muita tristeza. Não deveria ter acontecido. Um rapaz de 17 anos, menor de idade. Ele [Ludierley] está vivo pela misericórdia de Deus. Eu sei que Deus estava com suas mãos o protegendo. Você vê que o rosto dele não está nem muito queimado. Sei que tem uma parte do corpo muito queimada, mas eu agradeço a Deus por ter protegido o Ludierley mais uma vez. Eu preciso que ele se conserte. Que ele fique bem”, disse a mulher.
Tratamento doloroso
Ludierley precisa passar por um procedimento chamado balneoterapia — que é a raspagem da pele queimada. Para isso, os médicos precisam sedá-lo. Esse procedimento é diário e doloroso.
“Eu não desejo isso nem para o meu pior inimigo. É muita dor”, afirmou o homem.

O cirurgião plástico Éder Nogueira Teixeira Tavares explicou que o caso de Ludierley é grave, mas estável.
“A parte posterior [do corpo] está praticamente toda queimada. Todo dia fazemos a balneoterapia. Pegamos o paciente, ele é sedado para não ter dor. Então, o ferimento é limpo com um sabonete específico e a gente faz a raspagem com um bisturi”, disse. “Em seguida, passamos o sulfadiazina de prata que não deixa as bactérias crescerem no corpo”, acrescenta.
Segundo o especialista, Ludierley não tem previsão de alta.
De MG para o Rio em busca de vida melhor
Mineiro de Juiz de Fora e criado em Ubá, Ludierley Satyro viajou ao Rio há mais de 10 anos, em busca de uma vida melhor. Acabou se envolvendo com drogas e foi viver na rua.
Durante uma tentativa de recuperação, conheceu a companheira em um centro de reabilitação. Namoraram, casaram-se e tiveram um filho.
Emocionando, ele contou como tudo aconteceu.
“Eu resolvi ir para um centro de recuperação e um rapaz me apresentou a Cidade de Deus e fui [para o tratamento]. Como eu estava sem documentos, eu fui a um projeto para tirá-los. Lá estava uma magrinha baixinha de óculos. Eu sempre falei que eu não iria me apaixonar, abrir o meu coração. Mas, ali, foi amor à primeira vista. Missionária Beatriz é o nome dela. Começamos a conversar por telefone. Em seguida, surgiu o noivado e o casamento. Nos casamos no campo do Madureira, foi um belo casamento. Deus me abençoou. Um rapaz que vivia na rua ter uma excelente esposa e um filho de 7 anos.”
No entanto, em pouco menos de dois anos, o homem voltou a usar drogas e a viver na rua. Agora, o sonho é deixar o hospital e tentar se afastar do vício.

“Quero ter uma vida digna, largar essa maldita droga que só come dinheiro. Quero voltar a trabalhar, andar bonito, voltar aos meus 72 quilos. Se eu pudesse, voltaria a ser criança. Quero pegar o meu filho, sentar no campo, sentar com ele em um cavalo. Eu quero comprar um cavalo para ele.”
Questionado sobre o que pensa de seus agressores, ele disse o seguinte:
“A vida nos ensina muita coisa. O que se planta, se colhe. É o círculo da vida. Se planta o bem, colhe o bem. É da natureza: plantou, vai colher. Se planta o mal, colhe o mal.”
Tentativa de homicídio
O adolescente vai responder por fato análogo a tentativa de homicídio triplamente qualificado, por motivo torpe e meio cruel, sem dar chance de defesa à vítima e ainda por armazenamento de imagens de abuso sexual infantil, que os policiais encontraram no celular dele.
Miguel vai responder por tentativa de homicídio triplamente qualificado — mediante pagamento, com emprego de fogo, recurso que torna impossível a defesa da vítima e motivo torpe. Também será indiciado por associação criminosa, apologia ao nazismo, corrupção de menores e armazenamento de conteúdo de abuso sexual contra crianças.
Segundo a polícia, o grupo do qual o militar e o adolescente faziam parte fomentava frequentemente crimes de ódio e apologia ao nazismo de forma explícita na rede social.
Em nota, o Discord afirmou que “tem uma política de tolerância zero para discurso de ódio e violência, que não têm espaço em nossa plataforma nem em qualquer lugar da sociedade”.
“Assim que tomamos conhecimento de conteúdos desse tipo, seja por meio de nossas ferramentas de segurança ou por denúncia de usuários, tomamos as devidas medidas, que podem incluir o banimento de usuários, o encerramento de servidores e, quando apropriado, o acionamento das autoridades locais competentes. Neste caso, o Discord reportou proativamente o incidente às autoridades, baniu as contas envolvidas e encerrou o servidor. Seguimos cooperando com as autoridades na investigação desse caso”, disse a plataforma.
**Fonte: g1 Rio