“Faroeste Caboclo” quer levar espírito da Legião Urbana ao cinema

Sétima arte

Música composta por Renato Russo deu origem a universo complexo; iG visitou o set de filmagens no interior de São Paulo.

Início de uma tarde de julho em Campinas, em um tradicional clube esportivo da cidade. Cerca de 40 jovens dançam com entusiasmo em uma sala esfumaçada, globo de luz girando no teto. Nas paredes, LPs de Diana Ross, Elton John, Blondie e algumas coletâneas obscuras da disco music. Nas caixas de som, silêncio. “Se joga, pessoal”, grita a assistente de direção; a turma de figurantes, descalça para não fazer barulho, faz cara de quem está se divertindo como nunca. Ao fundo, prestes a gravar as últimas cenas de “Faroeste Caboclo”, estão Ísis Valverde e Felipe Abib, ambos concentrados. Ela, fumando com uma lata de energético nas mãos; ele, fones no ouvido, vociferando contra as paredes.
O cenário não é óbvio quanto se pensa em Legião Urbana, mas a adaptação da música que Renato Russo escreveu aos 19 anos e só gravou quase uma década depois, em “Que País É Este” (1987), deu origem a um universo complexo quando transposto para os cinemas. Das rodinhas de violão, o épico de João de Santo Cristo evoluiu de versos cantados ao longo de nove minutos para uma produção de R$ 6 milhões, filmada em quatro cidades e com a responsabilidade de agradar a uma multidão de fãs.
A cena que o iG acompanhou se passa na metade da história, quando João está preso em Brasília, depois de deixar o sertão da Bahia, mudar-se para a capital federal e virar um poderoso traficante. De acordo com a cronologia da canção ao deixar a prisão ele encontra Maria Lúcia, muda de vida, cai no crime outra vez, é traído e morre num duelo com o rival Jeremias. No set em Campinas, Maria Lúcia (Ísis Valverde) vai a uma boate pedir ao bigodudo Jeremias (Felipe Abib) que ajude João na cadeia – a ordem das coisas,
Na opinião dos realizadores, a mudança foi um processo natural. Envolvida com o projeto desde 2006, quando comprou os direitos da canção, a produtora Bianca De Felippes esclarece que a ideia nunca foi fazer um videoclipe. “É uma história original, com início, meio e fim.”
A primeira versão do roteiro foi escrita por Paulo Lins (autor do romance “Cidade de Deus”), mas depois acabou nas mãos de Victor Atherino e Marcos Bernstein (“Chico Xavier”, “Central do Brasil”), responsável ainda por “Somos Tão Jovens”, cinebiografia de Renato Russo que também é filmada na região de Paulínia.
Estreante em longa-metragem, o diretor René Sampaio garante que a música foi “muito respeitada”, porém o meio impôs informações novas. “A música respeita a métrica, enquanto nós precisamos respeitar os atos, a coerência narrativa de um filme. Por isso algumas passagens ganharam mais importância, como o triângulo amoroso, por exemplo”, explica.
“Minha preocupação era contar a história de João de Santo Cristo e procurar conhecer essa pessoa, criar um personagem de verdade e que todos tivessem vontade de acompanhar. O roteiro teve seus momentos de impasse, de angústia criativa, mas achamos o fio, que é saga desse anti-herói.”

Tragédia grega moderna
Anti-herói é a palavra que está na ponta da língua de Fabrício Boliveira, o protagonista. Selecionado depois de testes em Salvador, onde nasceu, o ator não aparenta em nada o aspecto ameaçador do personagem. Se como João ele lembra os criminosos que interpretou em “Tropa de Elite 2” e “400 contra 1”, ao vivo se assemelha mais a Didu, da novela “A Favorita”, ou no máximo ao Saci de “O Sítio do Pica-Pau Amarelo” (2007).
Ao falar de João de Santo Cristo, Fabrício demonstra segurança. Com a sua participação no filme praticamente encerrada (faltavam apenas as filmagens n’uma cidadezinha de Pernambuco, dublê da Bahia da infância do personagem), ele apresenta uma conceituação teórica para a saga. O ator cita Brecht, embora o mito de Édipo, escrito por Sófocles, seja mais presente.
“É como se fosse uma tragédia clássica grega, quando o oráculo determinou o destino de Édipo, levada ao tempo atual, para um cara que mora na favela. Ele tem poder de escolha ou o destino já está traçado? Quem é esse destino, esse Tirésias? Será que existem outras possibilidades?”, indaga. “A tragédia pode se relacionar com tudo o que a gente faz, mas dei um mergulho profundo porque queria colocar um anti-herói dentro de uma típica tragédia grega, fazer essa mistureba para ver no que ia dar.”

Sem mocinho e bandido
Tudo isso porque João de Santo Cristo não é um mocinho tradicional. Por mais que ao longo da trama ele tente levar uma vida correta, logo volta para o mundo do crime e se entrega ao sentimento de vingança. Para Fabrício, nem mesmo o rival Jeremias pode ser visto apenas como um vilão.
“Não tem maniqueísmo. Vocês vão ver que o João é muito mais do que o estereótipo de
um traficante, de um bandido. Não se toma partido.”
“Tentamos tirar toda essa noção de quem é mocinho, bandido, vilão. Não tem nada disso. Cada um tem a sua verdade, sua forma de lidar com o mundo”, completa Felipe Abib. O ator, que em breve faz sua estreia no cinema com “180º”, contextualizou seu Jeremias dentro da aristocracia brasiliense: filho de militar, membro da elite da cidade, assim como sua amada Maria Lúcia, filha do senador interpretado por Marcos Paulo.
“Ele é da família de um milico, mas poderia ser de um político ou algo parecido. Cheguei a construir uma coisa mais psicótica, louca, e fui associando isso à idéia do roteiro, que colocava o personagem dentro dessa burguesia que não tem limites, que roubava mobilete, jogava arame farpado em fios de alta tensão, queimava índios, tudo isso.

Febre Legião Urbana
Ao falar de “Faroeste Caboclo”, o diretor René Sampaio (premiado pelo curta “Sinistro” (2000) e por trabalhos em publicidade) comenta que utilizou elementos de tragédia, romance, de faroeste – como na cena do duelo final, uma de suas favoritas -, mas que isso só colaborou para criar uma identidade singular, como a música também possui.
“O filme tem uma cara, um estilo muito próprio, que acho importante. Ao mesmo tempo, apesar do apuro estético, nos preocupamos em não fazer um exercício sobre como filmar, para fazer bonito apenas, de criar um estilo para ter estilo.”
O prazo é apertado, mas a estreia deve acontecer no início de 2012. Pelo menos é o que espera a produtora Bianca De Felippes, ex-sócia de Carla Camurati, que inaugura com “Faroeste Caboclo” a Gávea Filmes. A ideia de levar o filme às telas em janeiro é um desejo pessoal, já que foi o mesmo mês em que estreou “Carlota Joaquina” (95), marco da retomada do cinema brasileiro, com 1,2 milhão de espectadores, e seu primeiro trabalho em longa.
“Lancei ‘Carlota Joaquina’ no dia 6, quando nenhum filme dava certo em janeiro, e foi uma data que me deu muita sorte. Gostaria de fazer isso de novo.”
Para Bianca, a safra conjunta de filmes relacionados à Legião Urbana – o curta “Eduardo e Mônica”; a cinebiografia de Renato Russo, “Somos Tão Jovens”; e o documentário “Rock Brasília” – é uma coincidência, embora “Faroeste” seja mais antigo. “Os outros são bem anteriores ao nosso. Conhecia a família desde 2002 e, quando comprei os direitos da música [em 2006], me disseram que a biografia sairia antes. Calhou de tudo acontecer ao mesmo tempo. Acho que eles correram para não ficar atrás (risos).”
A expectativa para a estréia é grande. A produtora, no entanto, mantém o pé no chão, inclusive pela história de tom pouco convencional. “Meu sonho é fila na porta, mas não é um filme leve. Temos de honrar Renato Russo, até porque somos fãs, eu, René e [o produtor] Marcelo Maia. Quisemos fazer o filme que precisava ser feito, sem muitas concessões.”
René Sampaio tem postura semelhante. “Gostaria que todo mundo visse, fizemos um filme que busca o diálogo com a platéia. Se vai ser blockbuster ou não, só o público vai dizer.”

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