EM DIREÇÕES OPOSTAS – Enquanto Câmara restringe acesso de vítimas de estupro ao aborto, Senado reforça proteção de menores de 14 anos.
Aprovado na Câmara o PDL que revoga resolução do Conanda sobre aborto legal; no Senado, a CCJ aprova projeto que reconhece “vulnerabilidade absoluta” de crianças menores de 14 anos. Censo revela ainda que 30 meninas e meninos entre 10 e 14 anos vivem em união conjugal em Uberaba, município localizado no triângulo mineiro.
Roberto Naborfazan
Enquanto a Câmara dos Deputados aprovou um projeto que pode dificultar o acesso de crianças e adolescentes vítimas de estupro ao aborto legal, o Senado deu um passo na direção oposta: a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) aprovou o PL 2195/2024, que reconhece vulnerabilidade absoluta de menores de 14 anos em qualquer relação sexual, consolidando que esse tipo de ato configura estupro de vulnerável.
Em meio a esse debate, dados do Censo 2022 revelam que, em Uberaba (MG), 30 crianças entre 10 e 14 anos vivem em união conjugal, evidenciando que o país ainda convive com a naturalização da exploração sexual infantil.
Câmara aprova projeto que restringe direitos de vítimas de violência sexual
A Câmara dos Deputados aprovou, no dia 5 de novembro, o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 3/2025, de autoria da deputada Chris Tonietto (PL-RJ), que susta a Resolução 258/2024 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).
A medida, que ainda precisa ser votada no Senado, anula as diretrizes que garantiam às vítimas de violência sexual o direito de acessar o aborto legal sem obrigatoriedade de boletim de ocorrência, autorização judicial ou comunicação aos responsáveis legais — especialmente quando o agressor é membro da própria família.
O texto foi aprovado com parecer favorável do relator Luiz Gastão (PSD-CE) e conta com apoio maciço da bancada bolsonarista e de parlamentares da direita conservadora.

Entre os coautores, estão nomes como Bia Kicis, Eduardo Bolsonaro, Carlos Jordy, Caroline de Toni, Zé Trovão, Otoni de Paula, Júlia Zanatta, Pastor Eurico e Pr. Marco Feliciano, entre outros (ver lista completa abaixo).
PDL 3/2025 Autores
Projeto de Decreto Legislativo de Sustação de Atos Normativos do Poder Executivo
Chris Tonietto – PL/RJ
Pr. Marco Feliciano – PL/SP
Franciane Bayer – REPUBLIC/RS
Julia Zanatta – PL/SC
Jefferson Campos – PL/SP
Maria Rosas – REPUBLIC/SP
David Soares – UNIÃO/SP
Mauricio Marcon – PODE/RS
Padovani – UNIÃO/PR
Carlos Jordy – PL/RJ
Otoni de Paula – MDB/RJ
Zé Trovão – PL/SC
Rogéria Santos – REPUBLIC/BA
Adriana Ventura – NOVO/SP
Delegado Caveira – PL/PA
Cabo Gilberto Silva – PL/PB
Bia Kicis – PL/DF
Filipe Barros – PL/PR
Ana Paula Leão – PP/MG
Any Ortiz – CIDADANIA/RS
Eros Biondini – PL/MG
Joaquim Passarinho – PL/PA
Dr. Luiz Ovando – PP/MS
Helio Lopes – PL/RJ
Simone Marquetto – MDB/SP
Márcio Honaiser – PDT/MA
Greyce Elias – AVANTE/MG
Carla Zambelli – PL/SP
Eduardo Bolsonaro – PL/SP
Caroline de Toni – PL/SC
Junio Amaral – PL/MG
Delegado Paulo Bilynskyj – PL/SP
Pastor Eurico – PL/PE
Stefano Aguiar – PSD/MG
Nelson Barbudo – PL/MT
Evair Vieira de Melo – PP/ES
Carla Dickson – UNIÃO/RN
Coronel Fernanda – PL/MT
Daniela Reinehr – PL/SC
Diego Garcia – REPUBLIC/PR
Messias Donato – REPUBLIC/ES
Silvia Waiãpi – PL/AP
Argumentos e controvérsias
Os autores do projeto alegam que o Conanda teria extrapolado suas atribuições ao eliminar a exigência do boletim de ocorrência. A deputada Chris Tonietto justificou:
“A violência sexual não pode ser combatida com o aborto, que é outra forma de violência. A gente combate com segurança pública. Sem contar que sequer é exigido o boletim de ocorrência do estupro.”
Outros parlamentares da direita argumentaram que a resolução fragilizaria o papel dos pais e abriria brechas para falsas denúncias.
Em contrapartida, deputadas e deputados de partidos progressistas como Jandira Feghali (PCdoB-RJ) e Fernanda Melchionna (PSOL-RS) alertaram para o retrocesso.
“A maioria dos estupradores são familiares. Obrigar a autorização dos pais é revitimizar a criança. Ninguém faz apologia ao aborto, mas negar o direito é impor sofrimento às vítimas”, defendeu Feghali.
Melchionna lembrou que leis já em vigor (Lei 13.431/2017 e Lei 12.845/2013) garantem o atendimento sem exigência de boletim, e que o PDL viola fluxos de proteção previstos em protocolos de escuta especializada e atendimento imediato às vítimas.
No Senado, avanço na proteção: CCJ reconhece vulnerabilidade absoluta de menores de 14 anos
Enquanto o PDL da Câmara reacendeu o debate sobre retrocessos em direitos sexuais e reprodutivos, o Senado Federal seguiu na direção oposta.
A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) aprovou o Projeto de Lei 2195/2024, que estabelece a presunção absoluta de vulnerabilidade para vítimas de estupro com menos de 14 anos de idade — ou seja, qualquer relação sexual entre adulto e menor dessa faixa etária será tratada como estupro de vulnerável, independentemente de consentimento, gravidez ou histórico sexual.

A proposta, de autoria da deputada Laura Carneiro (PSD-RJ) e relatada pela senadora Eliziane Gama (PSD-MA), surge após decisões judiciais polêmicas que absolveram adultos em casos de relações com meninas de 12 e 13 anos.
“O projeto elimina interpretações que relativizam a gravidade do crime e confere maior segurança jurídica. A experiência sexual da vítima ou a gravidez são irrelevantes para a aplicação da pena”, destacou Eliziane Gama.
O texto segue ao Plenário com pedido de urgência, podendo ir diretamente à sanção presidencial caso aprovado.
Realidade chocante: 30 crianças entre 10 e 14 anos vivem em união conjugal em Uberaba (MG)
Enquanto o Congresso Nacional debate conceitos de “vulnerabilidade” e “consentimento”, o Censo 2022 do IBGE revela uma realidade que colide com a legislação brasileira: em Uberaba (MG), 30 crianças e adolescentes de 10 a 14 anos declararam viver em união conjugal, embora o Código Civil proíba qualquer casamento ou união conjugal abaixo dos 16 anos, mesmo com autorização dos pais.
Os dados mostram que 17 são meninos e 13 meninas; entre eles, 17 declararam casamento civil e religioso e 13 união consensual.
Além disso, 1.559 adolescentes entre 15 e 19 anos também vivem em união na cidade. Segundo o promotor de Justiça da Vara da Infância e Juventude, Epaminondas da Costa,
“Crianças até os 16 anos deveriam estar na escola, brincando, e não assumindo responsabilidades de adultos. Muitas, ao formar família precocemente, acabam em trabalhos perigosos ou até no tráfico, tentando sustentar filhos e pagar aluguel.”

O Censo nacional revela que mais de 34 mil crianças entre 10 e 14 anos vivem em união conjugal no Brasil, o que evidencia a persistência do casamento infantil — prática que configura violação de direitos humanos e crime de exploração sexual segundo tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.
Crianças em união conjugal no Brasil (Censo 2022 – IBGE):
Total nacional: 34.000 entre 10 e 14 anos
Em Uberaba (MG): 30 casos
Maioria feminina: 13 meninas e 17 meninos
Faixa 15–19 anos: 1.559 adolescentes em união
Religião declarada: 39% católicos, 27% evangélicos, 17% sem religião
Penalidade aos responsáveis: multa de 3 a 20 salários mínimos (segundo o MP/MG)
Contradições e retrocessos
O contraste entre a decisão da Câmara, que restringe o acesso de meninas violentadas ao aborto legal, e a aprovação no Senado, que reforça a punição de abusadores, expõe uma profunda contradição na política brasileira de proteção à infância e adolescência.
Enquanto o discurso conservador insiste em controlar o corpo das vítimas, a realidade dos dados do IBGE mostra que milhares de crianças seguem sendo submetidas a relações conjugais e sexuais precoces, muitas vezes com a anuência da própria comunidade ou do Estado.
FOTO DE CAPA: Antonio Cruz/Agência Brasil


