DUAS HISTÓRIAS NUMA SÓ.

Fa­le Co­no­nos­co: rob­cury@hot­mail.com –  www.ro­ber­to­cury.blog­spot.com

Há muitos anos atrás, quando ainda morava e advogava em Santa Helena de Goiás, escrevi uma pequena história sobre “Zelão, o Bêbado”, que o então jornal “Goiás Espírita”, editado pela Federação Espírita de Goiás, publicou.
Tratava-se de um triste episódio que procurei narrar com fidelidade chegando a causar um rebuliço no meio espírita pelas nudez e crueza da narrativa.
José de Arimatéia Neves era um farmacêutico respeitado por seus conhecimentos e felicidade incomparável na manipulação de suas poções miraculosas que curavam as mais inusitadas e complicadas doenças naqueles idos da primeira metade do século 20, quando ainda não se conheciam medicamentos fabricados em série, salvo algumas drágeas (assim eram denominados os comprimidos) e certas injeções de bismuto de pouco efeito curativo, mas extremamente dolorosas.
José de Arimatéia tinha esposa e três filhos, dois meninos e uma menina linda, o mais velho com 9 anos, o do meio com 7 e a caçula com 5 e tudo corria às mil maravilhas quando a mulher, encantada com o trapezista do circo que surgira na cidade, fugiu com o amante levando a prole consigo.
O abandono do lar pela esposa e seus filhos, agiu como um petardo na cabeça e no coração de José de Arimatéia. De imediato, como que aturdido, tornou-se vago, olhar ausente. Desnorteado, descurou-se dos afazeres do dia a dia e suas poções já não ficavam prontas a tempo e hora para os efeitos de cura a que se propusera antes. Também parece que viraram água, no dizer da antiga clientela de “A Milagrosa” como era denominada a botica do José de Arimatéia.
Com o passar dos dias, perdeu-se nos bares próximos da sua casa que se situava no fundo da farmácia, bebericando doses de pinga até cair duro de tanto álcool. Algumas vezes, moradores da cidadezinha “cataram” o José derreado de tanta bebida e o levaram para casa. A farmácia, cada vez mais desleixada, acabou vendida quando começou faltar dinheiro para os goles que, no começo eram só após o expediente e que depois virou rotina para o dia inteiro até não aguentar mais. Vendida e consumida, nos bares, a botica, restava a casa que se perdia na imundície pela falta de cuidados e se deteriorava pelas intempéries. Novamente a falta de dinheiro para alimentar o vício, colocou a casa a venda sendo que José recebeu quase nada pela entrega da mesma. Logo, logo ficou sem farmácia, sem casa, sem nada, passou então a dormir, quando entorpecido, pelas calçadas ou bancos da praça da cidadezinha. Não bastasse isso, sem roupas, sem banho virou um molambo perdendo o respeito de seus conterrâneos e até das crianças que mangavam dele. Assim, José de Arimatéia teve toda a sua rica história esquecida pela população passando a ser chamado apenas de Zelão, o bêbado.
Quando, algum tempo depois, morreu por desnutrição e aviltamento do fígado pela quantidade de álcool ingerida diariamente, pois ao se findar os recursos financeiros, dolorosamente esmolava para mantença do terrível vício, foi encontrado, já hígido, na porta da igreja, naquela manhã em que o sol brilhava intenso no céu anilado entrecortado de nuvens brancas, pelo padre que recolheu o corpo e chamados a polícia e o médico do hospital vizinho, foi declarada a morte de Zelão. Piedosas pessoas, lavaram aquele corpo cascudo de sujeira, vestiram uma roupa limpa cedida sabe-se lá por quem, a funerária colocou os restos mortais num caixão de indigente, sepultando em cova rasa no cemitério situado nos arrabaldes da cidadezinha. Apenas, Simeão, conhecido como um dos poucos espíritas da comunidade, acompanhou o carro da prefeitura que levou o féretro e lá, diante, da cova, ainda aberta, recitou algumas palavras encomendando o espírito de Zelão às Entidades do Alto, encerrando com a prece sublime do Pai Nosso.
Interpelado pelo coveiro, ao fim do evento, ainda no cemitério, Simeão respondeu: – ele era nosso irmão que infelizmente fraquejou e se deixou derruir diante do abandono da família. Ele não tinha mais ninguém que cuidasse ou que o olhasse como ser humano que era como nós próprios, mas, apesar do seu descuramento, não deixara de ser nosso irmão. Então vim fazer a minha parte que era o mínimo que me incumbia como integrante da família espiritual de José de Arimatéia. E concluiu: lembremo-nos do José nas nossas preces nos próximos dias. Lembremo-nos do tanto de bem que ele fizera antes de cair no vício degradante da bebida. Lembremo-nos de que todos nós passamos por provas enquanto encarnados que servem para a redenção do nosso espírito imortal. Ele foi um bom homem que, infelizmente fraquejou na hora mais importante de sua vida, sucumbindo diante da dura prova que programara antes de reencarnar.
Fazia já uns dez anos da desencarnação de Zelão, quando um jovem de pouco mais de 20 anos apareceu na cidadezinha perguntando por José de Arimatéia. Quase ninguém se lembrava do farmacêutico, muito menos do nome que tivera. Até que um dia, inquirido pelo jovem, seo Orestes, já na casa dos 80 anos nascido na cidade e sempre morador na rua da Saudade, disse, assim de inopino: – Ah! cê tá perguntando do Zelão? O jovem, surpreso, respondeu: – Zelão? Não, pergunto do meu pai, o farmacêutico José de Arimatéia Neves. Eu sou o Júnior, José de Arimatéia Neves Júnior, filho mais velho dele.
Seo Orestes replicou: – menino, cê então é filho dele? Não ficou sabendo que seu pai descambou a beber depois que sua Lucinda e os três filhos se foram embora com o circo? Não ficou sabendo que Zelão bebeu a farmácia e a casa e ao fim viveu os últimos dias esmolando só pra manter o malfadado vício? Não ficou sabendo que ele morreu na porta da igreja e foi enterrado numa cova rasa como indigente num caixão cedido pela funerária? Zelão foi um excelente farmacêutico enquanto teve família e um fracasso depois da partida de vocês, que Deus o tenha.
Júnior, estupefato caiu num choro convulso causando surpresa no velho Orestes, que então lhe perguntou: – por que chora, filho? Cês abandonaram ele!
Júnior, embargado na voz pelo choro doloroso não conseguia falar. Só depois de uns bons minutos, já mais calmo, tomando fôlego, respondeu: – quando nossa mãe nos levou éramos crianças, eu só tinha 9 anos e, encantados com os espetáculos do circo, não sabíamos bem o que tinha acontecido com nossos pais. E nossa mãe dizia que éramos felizes por participarmos de um circo que todo dia passava por alegres novidades com a graça dos palhaços, com as estripulias do macaco Chico, com as evoluções de Heleno, no trapézio e que ela nos disse que era nosso pai a partir daquela noite em que fugimos.
E continuou: – Como o circo não parava mais do que alguns dias em cada lugar, tivemos de deixar de estudar. Uns poucos meses depois, Heleno foi se tornando agressivo com nossa mãe, culpando-a de tudo que podia e acusando-nos, os filhos, de entraves na vida dele. Até que um dia, minha mãe e os filhos nos vimos na rua de um lugarejo chamado São João Menestrel, num longínquo estado sulino, só com a roupa do corpo, sem um tostão, sem rumo e sem saber o que fazer. Desconhecidos que éramos, ninguém se habilitava sequer a nos dar atenção. Não tínhamos onde dormir, onde tomar um banho ou trocar a roupa suja por uma limpa e nem o que comer. Meu irmão começou a furtar frutas nos quintais ou nas bancas da feira livre, ficando conhecido como “o pequeno gatuno” indo parar na Delegacia inúmeras vezes. Minha irmãzinha, aos 6 anos foi estuprada por um tal Duílio, filho do magnata da cidade que dispunha das pessoas como se fossem mercadorias e minha mãe foi internada no bordel obrigada a nos abandonar na rua como indesejáveis até na casa de prostituição. Nossa desdita estava completa, só nos faltava morrer. Foi então que o minúsculo Centro Espírita Jesus de Nazaré, através de pessoas humildes nos recolheu, retirando-nos da rua e a nossa mãe do bordel, acolhendo-nos no pequeno Abrigo mantido por aquelas criaturas benfazejas que nos deram nova oportunidade. Eu e meus irmãos ganhamos roupa nova, banhávamo-nos todos os dias, comíamos as refeições deliciosas apesar de pobres, compostas de arroz, feijão, ora um pedaço de carne, ora muitos legumes. Novamente, matriculados, voltamos a estudar na escola do lugarejo, onde dona Nicássia, uma das trabalhadoras da Casa Espírita era diretora e onde, todos os dias tínhamos uma refeição que era ora uma sopa caldosa de mandioca com carne, ora um prato de galinha com arroz, ora feijão com pés de porco, sempre substanciosos alimentos que nos recuperaram da anemia que já tomava conta dos nossos corpos, revigorando-nos para a vida e fortalecendo nosso espírito. Nossa mãe passou a cuidar da limpeza do Centro e do Abrigo e também a cozinhar junto com Benedita, uma preta de um coração maravilhoso que nos tratou, todo o tempo, com desvelado carinho como se fôssemos da sua família. De noite participávamos das reuniões no Centro: minha mãe com as senhoras e nós as crianças na evangelização que dona Elisa ministrava com alegria e muito carinho. Nas tardes de cada dia, eu e meus irmãos ajudávamos nos cuidados da pequena horta que seo Quinzinho, um dos internos no Abrigo, plantara zelando carinhosamente como se fosse o terreno mais precioso de toda a sua vida. Aprendemos a plantar e a cuidar das alfaces, dos nabos, cenouras e beterrabas, das vagens, dos quiabos dos “feijões de corda”, dos tomates e até dos amargos jilós. Nada se perdia daquela horta. Se algum legume ou verdura passava da hora, era colocado num buraco raso e regado até iniciar o processo de apodrecimento, transformando-se em adubo natural e incorporado nos canteiros novos que iriam receber as sementes. Cebola e alho também plantávamos sempre em caixotes de frutas desprezados pelo comércio e que enchíamos de terra adubada com os restos vegetais ou com estrume que conseguíamos nos pastos próximos, permitida a nossa entrada pelos donos das terras. Nenhum inseticida foi aplicado na nossa horta até porque todos os dias vistoriávamos cada plantinha eliminando as pragas que quisessem se assenhorear dos nossos alimentos. Mantínhamos próximo um canteiro só de mato preferido das mariposas, borboletas e taturanas que então deixavam a horta imune. Nossa couve não tinha sequer um furinho causado por taturana. Aos 16 anos fui empregado na farmácia do seo Olavo e aprendi a manipular remédios como meu pai fizera quando teve a botica dele. De lá só saí pra viajar até aqui em busca de meu pai.
– E sua mãe e seus irmãos, inquiriu o velho Orestes.
– Minha mãe morreu ano passado, depois de sofrer com uma tísica que lhe corroeu os pulmões e a fazia vomitar sangue cada vez que tossia. Meu irmão ingressou na farda da Guarda Civil e lá está até hoje. Minha irmã casou-se com o vendeiro Zezé e a seis meses nasceu o primeiro filho do casal. Eu continuo solteiro porque me prometera buscar meu pai para viver conosco. Infelizmente, não será possível. Então perguntou: – O senhor poderia me indicar onde o corpo de meu pai foi sepultado? Quero fazer uma prece no local.
– Sim, posso, respondeu o velho. E se dirigiram para o cemitério. Lá chegando, o velho pediu a ajuda do coveiro que foi com eles até um montículo de terra, onde se via já um musgo cobrindo partes dizendo: – aqui jaz o Zelão, que Deus o tenha. Voltou e foi cuidar do que estava fazendo quando interrompido pelos dois.
O velho, tirara o chapéu mantendo-o de encontro ao peito e Júnior, caiu de joelhos diante do túmulo singelo e recitou: – Pai de Bondade extrema, de Amor Profundo e único, perdoa nossos erros em relação ao meu pai e abençoa-o para que ele possa estar recuperado dos seus sofrimentos e de seus erros, e que tenha se transformado num dos trabalhadores da Tua Seara Bendita e que, se um dia for permitida a sua volta que possa se reencarnar na nossa casa terrena.
Surpreendido e estático Júnior ouviu uma voz que vinha do Alto e lhe penetrava o centro da cabeça: – Seu pai, recuperou-se no Mundo Espiritual e já renasceu na sua família. Ele é o filho de sua irmã caçula.
Júnior chorou copiosamente de novo deixando intrigado o velho Orestes. Mas, o choro, agora não era de tristeza, mas de alegria por saber que seu Pai não mais estava abandonado e sim abrigado no seio de muito amor com sua irmãzinha. Seu pai, agora, era seu sobrinho.
Levantando-se, elevou suas mãos aos céus e disse em voz alta: – Graças te dou meu Deus por tua Bondade e misericórdia.
Então saíram do cemitério voltando para a cidadezinha. O velho Orestes, encantado com as atitudes de Júnior convidou-o para o almoço em sua casa: – meu jovem, almoce comigo e com minha velha. É comida simples, mas substanciosa. Meus filhos são todos casados e vivem em cidades distantes. Com sua presença, cê vai alegrar nossa casinha.
Dona Augusta recebeu o jovem como se fosse seu filho e durante todo o tempo em que ficaram juntos conversaram alegremente sobre tudo o que foi possível. Ao final da tarde, Júnior pediu licença para se despedir, pois na manhã seguinte tomaria o ônibus que o levaria de volta à sua cidade onde o trabalho o esperava. Seguiu, então, até a Pensão da dona Inês, onde se hospedara assim que chegou na cidade. Dia seguinte partiu de volta para São João Menestrel, reintegrando-se no trabalho da botica e nada mais se soube dele, nem dos seus irmãos. Zelão voltara a ser José de Arimatéia Neves Neto, assim foi o nome que sua irmã deu ao agora sobrinho de Júnior.

POEMA

UNIVERSO

Roberto Cury

Quem diria que o Universo, se resume num ponto, e esse ponto tem vida
E respira e se alimenta e pula e corre e sonha?
Quem diria que nesse sonho há forma, há cor, há brilho e luz e vida?
Pois que esse ponto se confunde com o sonho e o ponto ou o sonho
Tem contorno tem graça e beleza. É o próprio universo, e o Universo é você!

 

Share

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *