Da vida orgânica à desumanização provocada pela seca: Os processos de zoomorfização e antropomorfização em Vidas Secas

Larissa Cardoso Beltrão – laricinhabeltrao@hotmail.com – Larissa Cardoso Beltrão¹ – Bruna Nascimento²  

p10-vidas_secasO livro Vidas Secas publicado em 1938, é o único romance de Graciliano Ramos escrito em terceira pessoa, e retrata a fuga de um grupo de retirantes nordestinos em decorrência da seca que afetara a região. A família era a de Fabiano, composta por sua esposa Sinhá Vitória, o menino mais novo e o menino mais velho, que assim são chamados durante todo o romance, e por último a cachorra Baleia, uma personagem que assumirá, em muitos dos treze capítulos, o centro da narrativa.
A tristeza aumenta a cada começo de um novo período de seca, onde ocasiona novamente a fuga incessante, assim devem partir outra vez. No último capítulo denominado “Fuga”, embora sugira o desfecho na narrativa, a família não sabe exatamente para onde está indo, e assim a obra termina com o mesmo contexto que se inicia, com a busca constante dos retirantes por uma vida longe da seca do sertão, o que confere à este romance a condição de cíclico. Não sabemos de onde vem a família de Fabiano e, muito menos, para onde irá.
A presença de um narrador onisciente, criando discursos indiretos livres, a subjetividade da narrativa deixa clara, a postura dos personagens animalizados. No momento em que o escritor dedica um capítulo para cada personagem, torna-se evidente o problema da falta de comunicação entre eles. Diante da impossibilidade de se articular o discurso, o grupo de retirantes é colocado à margem da sociedade, o que evidencia o drama social vivido pelos personagens. Os membros da família de Fabiano não conseguem falar, é o narrador quem capta seus pensamentos e fala por cada um deles.
Não obstante, flagramos ao longo do percurso feito pela família situações nas quais ocorrem o processo de zoomorfizaçãoe antropomorfização. Nos quais, como os prefixos zoo e antro sugerem, homem e animal mudam suas formas (morphos – morfo). No primeiro caso, o homem é levado à condição de animal, como por diversas vezes podemos verificar nas relações estabelecidas entre Fabiano e os seus. Constante bem especificada nas figuras de seus dois filhos que, por sua vez, não possuem se quer um nome próprio, são chamados menino mais velho e menino mais novo.
O segundo caso, o da antropomorfização, é assinalado a partir da existência da cachorra baleia, que no decorrer da obra assume características humanas, diferentemente dos meninos, ela tem nome. Sua humanização é acontece na medida em que ela é personificada, ela assume a condição humana em detrimento da animalização de seus donos. De um lado Baleia que sente, ama, protege e cuida, enquanto Fabiano é construído sob o signo da aridez, ele é duro, seco e áspero.
Ler Vidas Secas é sentir a condição às quais os personagens foram submetidos, no que diz respeito a Fabiano e Baleia, não é difícil perceber a inversão de lugares no desenrolar do romance a troca de lugar da personalidade destes. No segundo capítulo, intitulado “Fabiano”o próprio personagem se reconhece como animal, “Você é um bicho, Fabiano” (RAMOS, 2000, p. 18). É evidente a posição de animal atribuída a Fabiano, embora anunciada pelo narrado, era fruto do pensamento dele. Ele mesmo retirava sua humanidade e o levava à condição animalesca:
Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés duros quebravamespinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. (RAMOS, 2000, p. 19).
No trecho acima fica evidente a condição inferior de Fabiano. Longe do centro da sociedade, em sua margem, ele goza de todas as tormentas que seca pode provocar: miséria, fome e opressão. Longe das condições de convivência humana, seu contato se estabelece tão somente com os animais que o cercavam, de modo que diversas vezes se confundia com eles, não tinha condição de articular a linguagem, essa sua dificuldade de articular o discurso , é evidente na obra, pois:
[…] às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos – exclamações, onomatopéias. Na verdade, falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas. (RAMOS, 2000, p. 20)
Fabiano, mais uma vez, reafirma sua incapacidade de falar, dedicava-se ao silêncio, e admirava a linguagem utilizada pelas pessoas da cidade, mas muitas vezes reconhecia o perigo que continha nelas. A família não estabelecia comunicação entre si, apresentava dificuldades ao utilizar a linguagem, estava, quase sempre, restrita à emissão de palavras monossílabas, isso fica claro durante o desenrolar da narrativa, o silêncio é a voz que fala no romance.
Contrastando com a situação marginal de sues donos, Baleia ocupa o centro a narrativa, é ela quem assume a condição de guia e, portanto, chefe da família. Logo no início do enredo o narrador já deixa claro a sua valoração, ela é apresentada como se fosse um membro da família. Ela farejava tudo o que se passava naquele lugar, comunicando-se através de gestos, conseguia desenvolver todos os sentidos, tanto cognitivos quanto psicológicos, percepções inteiramente humanas.
No percurso da obra, principalmente no capítulo dedicado a ela, cujo título é “Baleia”, o autor dá a personagem inúmeras características que, geralmente, não são atribuídas a seres irracionais, principalmente quando a descreve como sendo “uma pessoa da família: brincavam juntos aos três, para bem dizer não se diferenciavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo” (RAMOS, 2000, p. 85-86).
Dentro do romance, o processo de antropomorfização de Baleia é intenso, a personagem é colocada na condição de um ser humano, ela é um membro daquele núcleo familiar, “(…) Baleia, séria, desaprovava tudo aquilo” (RAMOS, 2000, p.52), a personagem apresenta características que a aproximam de um ser humano. Diferentemente de Fabiano, a cachorra Baleia era dotada de atributos humanos: “O menino mais velho e Baleia ficaram admirados” (RAMOS, 2000, p.53, grifos nossos). Na passagem em destaque, fica evidente a personificação da personagem que, mesmo sendo um animal, tem as mesmas reações que o garoto.
A cachorra, nessa perspectiva, exerce um papel de grande relevância no romance, como é possível evidenciar no momento que Baleia encontra-se perto do fim de sua vida. Depois de diagnosticar sua doença, a família decide sacrificá-la, nessa ocasião “a cachorra espiou o dono desconfiada” (RAMOS, 2000, p.87), mais uma vez ela lança um olhar humano, assumindo características nada animalescas, nas concepções Antônio Cândido (2006, p. 149) “(…) a presença da cachorra Baleia institui um parâmetro novo e quebra a hierarquia mental (digamos assim), pois permite ao narrador inventar a interioridade do animal, próxima à da criança rústica, próxima por sua vez à do adulto esmagado e sem horizonte”.
Diante do exposto, acreditamos, pois, que os processos de zoomorfização e antropomorfização são evidenciados ao longo do romance, na medida em que nos permite flagrar uma inversão de lugares, a família de Fabiano ocupa a margem da narrativa, em alusão ao seu lugar na sociedade, enquanto Baleia segue no centro da narrativa, se fosse gente, possivelmente, estaria nos holofotes, pois saberia como falar, articularia seu discurso, lutaria pelos seus.
O romance Vidas Secas proporciona ao leitor o contato com a saga de uma família de retirantes nordestinos, evidenciando todas suas dificuldades decorrentes não somente da seca e suas consequências externas, tais como a fome, mas sobre tudo da formação interior das personagens que acabam assumindo, em sua personalidade, as condições ásperas e ríspidas do local. A desumanização da família de Fabiano é fruto da aridez de uma terra que não os oferece condições de vislumbrar um futuro melhor, daí a animalização desses seres que migram, constantemente, de um lugar para outro, em busca de algo em que eles mesmos nem acreditam.
Graciliano Ramos coloca-nos diante de um paradoxo, de um lado as condições orgânicas sugeridas pelo substantivo vida, do outro a aridez provocada pelas condições enfrentadas pelos retirantes no caminho áspero e seco. A zoomorfização da família de Fabiano nada mais é do que o seu processo de desumanização, a marcha não é mais pela vida, mas tão somente pela sobrevivência. O processo cíclico da narrativa, “este encontro do fim com o começo, forma um anel de ferro, em cujo círculo sem saída se fecha a vida esmagada da pobre família de retirantes-agregados-retirantes” (CANDIDO, 2006, p. 151), deixa evidente a ideia de que este sofrimento é uma constante, apesar de tudo, eles seguem. Mas para onde?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÀFICAS
CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. São Paulo: Ouro sobre Azul, 2006.
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas.79 ed. Rio de
Janeiro: Record, 2000.

¹ Professora de Literatura Brasileira III na Universidade Estadual de Goiás, campus Campos Belos.
¹ Graduandos em Letras pela na Universidade Estadual de Goiás, campus Campos Belos.

 

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