DA MARGEM AO CENTRO: AS VOZES DO SILÊNCIO EM UM DISCURSO SOBRE O MÉTODO, SÉGIO SANT’ANNA
Larissa Cardoso Beltrão – laricinhabeltrao@hotmail.com
Partindo do pressuposto de que a literatura é um reflexo dos fatores sociais e que, portanto, traz consigo tanto os anseios individuais quanto coletivos de indivíduos, inseridos em dado contexto.
BELTRÃO, Larissa Cardoso¹
GONÇALVES, Karina Ferreira²
SOUZA, Carlos Henrique de²
Nessa perspectiva, no conto Um discurso sobre o método, Sérgio Sant’Anna constrói uma espécie de narrativa do outro, ao trazer para o centro de seu enredo um ser oprimido pela sociedade, um operário, até então, invisível.
A trama é tecida a partir da figura de um cidadão comum que tem uma história de vida análoga a milhares de indivíduos do mundo contemporâneo. De maneira sagaz, o narrador seduz e sensibiliza o leitor para um problema que atinge grande parcela da sociedade brasileira, uma vez que, somos convidados, simultaneamente, a refletir sobre o contexto social e suas demandas econômicas, mas não podemos deixar de experimentar o dilema existencial vivenciado por um extremamente marginalizado, que se quer tem um nome.
O homem da marquise, como é chamada a personagem, está tão habituada à sua condição marginalizada que estranha o fato de, ainda que por engano, receber atenção do outro. Fragmentado entre a multidão das grandes cidades, o operário da empresa Panamericana ficou extasiado ao saber-se centro dos olhares quando um dia, durante uma pausa para apreciação da única metade de cigarro que lhe restara, fora confundido com um suicida.
O sujeito não tem acesso ao discurso, ele não é capaz de articular a fala, desse modo cabe ao narrador a reponsabilidade de realizar todo o jogo de sentido existente no enredo, neste caso em particular, o mesmo toma para si uma postura reflexiva, haja vista que é a partir das situações abordadas, que o leitor constrói a imagem do sujeito enquanto indivíduo social, oprimido pela sociedade.
Temos, nessa perspectiva, um narrador, aparentemente culto, que fala do, e pelo, operário, e deste modo avigora aquilo que a sociedade costuma fazer por ele:
Ele estava enganado, mas não muito longe da verdade, embora o estivesse da originalidade: ele não era um sonho, mas uma alegoria social. Social, política, psicológica e o que mais se quiser. Aos que condenam tal procedimento metafórico, é preciso relembrar que a classe trabalhadora, principalmente o seu segmento a que chamam de lúmpen, ainda está longe do dia em que poderá falar, literariamente, com a própria voz. Então se pode escrever a respeito dela tanto isso quanto aquilo. (SANT´ANNA, 1989, p.08. grifos nossos).
O homem da marquise estava habituado a este trabalho, era um operário, de uma companhia de serviços gerais, pronto para mais um dia de trabalho. No entanto, ao ter sua pausa matinal compreendida como uma tentativa de suicídio, a ineficiência a articulação do discurso colocou-o em uma situação imaginada. Apesar do desconforto era a primeira vez que ele se reconhecia como centro das atenções. A multidão que aclamava por seu fim era a plateia, e a marquise, espaço de seu ganha pão, tornara-se agora um palco:
[o] fato é que ele jamais estivera num palco, num pedestal, e isso afetara sua modéstia. Não é preciso conhecer a palavra pedestal para saber que as estátuas repousam sobre uma base (…). E haveria sempre alguém que pudesse narrar isso por ele, até que as condições socioeconômico-culturais da classe operária se transformassem no país e ela pudesse falar com a própria voz. (SANT´ANNA, 1989, p.03).
O simples fato de reconhecer-se como centro, despertou no homem da marquise um turbilhão de sensações. Seu instante de auge, é também seu momento de declínio. Ao reconhecer o engano a plateia fica inconformada com a situação. A sociedade moderna é lugar o espetáculo. Ao perceber o descontentamento, o homem da marquise pensa em sua condição desestabelecida, uma vez que ele, enquanto operário, era um legitimo representante da classe social que emergia:
E isso ampliava, derepente, de maneira literalmente vertiginosa, a sua consciência social. Aquele pessoal lá embaixo, como ele próprio, a mulher e os filhos, não era gente bonita, bem alimentada e imbuída de elevados propósitos; pelo contrário, era preciso aplaca-los com sangue e circo. Então ele chegou a refletir – se se pode chamar assim o clarão de raiva queo atravessou – sobre métodos violentos de transformação da sociedade. Alguém mais cultivado poderiacontrapropor métodos constitucionais de mudança. Mas issopoderia levar décadas ou um século, ou talvez não acontecesse nunca. (SANT´ANNA, 1989, p. 03)
Nesse contexto, podemos verificar que, ao considerar a abordagem de Descarte, em Discurso do método, não obstante notamos que ao utilizar uma personagem sem nome, o narrador procura não individualizar o assunto abordado, mas aproximá-lo das reais condições sociais em que se encontram os indigentes e excluídos da sociedade. Ele trata também, ainda que de maneira implícita, da relação de dominação entre os detentores do poder e os que passivamente obedecem e se alienam às ideologias sedimentadas por aqueles que dominam e exploram os dominados. Sob o pretexto de que tudo é realizado em nome do progresso e das exigências da globalização.
Não afirmaremos aqui que é função da literatura formalizar o sujeito enquanto indivíduo social, mas podemos perceber, a partir da estética modernista, uma maior preocupação social, por parte dos autores, o que compreendemos como engajamento. Nessa perspectiva, não podemos esquecer o esquecer da mímeses, já sugerida por Platão e Aristóteles, a literatura por si só, já se imbui da função de dar voz aos sujeitos que não a têm, uma vez que se volta para a representação das partes sociais esquecidas e marginalizadas pelo sistema capitalista.
Não obstante, no conto em análise, é possível constatar o aspecto humanizador da literatura, como assina Antônio Cândido (1995), isso é evidenciado na postura tomada pelo narrador, que empresta sua voz a um operário que não fala por si só, a dinâmica literária, neste caso, é evidenciada a partir de seu caráter de denúncia, uma vez que procura retratar situações, aparentemente, invisíveis.
Ademais, é preciso destacar ainda que, o fato de termos um narrador intelectual que divaga, filosoficamente, acerca de um homem comum, instaura-nos sobre o terreno da doutrina existencialista do filosófico francês Jean-Paul Sartre (1905-1980), principal responsável pela concepção desta corrente de pensamento. A qual procura analisar as relações que o indivíduo cria com o mundo ao seu redor. No caso do operário, o seu momento mínimo de existência está concentrado na marquise, sob o seu local de trabalho, local em que constrói um teatro particular, mas ao final, não passa de uma alegoria social:
Havia também qualquer coisa de existencialista nele, com esse negócio de viver intensamente um momento limite e dar-lhe um sentido, como alguma personagem de Jean-Paul Sartre, além de ter sido acometido, há pouco, de uma boa dose de náusea existencial em relação a si próprio e à massa humana. Por outro lado, mesmo em condições socioeconômicas mais favoráveis, haveria o absurdo da existência. Ele era um absurdo. Uma consciência largada no mundo, que podia morrer a qualquer instante e não era feliz. (SANT´ANNA, 1989, p.04).
O enredo da trama é constituído a partir de duas realidades extremas, De um lado o narrador culto que narra, de um lugar privilegiado, cenas de violência simbólica. Do outro, o silêncio do operário oprimido que não direito à voz. É evidente que o narrador figura no centro da narrativa, haja vista que formula um aspecto crítico dos modos sociais. Ao posicionar-se diante do espetáculo e penetrar na mente do trabalhador, mesmo encontrando-se em um lugar distante do espetáculo que desenrola na marquise, ele reforça o que a sociedade, por si só, já diz, o homem da marquise é, de fato, uma alegoria social, política e psicológica.
Diante do exposto, acreditamos, pois, que no conto Um discurso sobre o método, o narrador onisciente invade o subconsciente do homem da marquise e de lá extrai seus anseios mais íntimos.
Na medida em que o enredo avança, verificamos que este conto é um reflexo da sociedade urbanizada, fortemente marcada pela fragmentação do citadino. Diante do espetáculo da modernidade, a voz do narrador oscila entre o reflexivo e o filósofo, ao reconhecer a fragilidade do homem da marquise e emprestar a ele seu discurso, não obstante, verificamos uma reação ao silêncio experimentado pela coletividade, de modo mais específico, pela classe operária, no contexto, submetida às imposições dos detentores do poder, e do discurso.
BELTRÃO, Larissa Cardoso¹
GONÇALVES, Karina Ferreira²
SOUZA, Carlos Henrique de²
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
CÂNDIDO, Antônio. “O direito à Literatura”. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
DESCARTES, René. Discurso do método. Trad. João Cruz Costa. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s/d.
SANT’ANNA, Sérgio. A senhorita Simpson: histórias. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.