CRÔNICA DE NATAL – Minhas dores, o comércio de Papai Noel e as dores de Nossa Senhora.

Roberto Naborfazan

Foi no dia 19 de outubro de 1960 que o mundo me viu chorar pela primeira vez, a enfermeira bateu forte, sem dó; mas foi n’uma manhã do dia 13 de março de 1969 que o mundo verdadeiramente me recebeu de braços abertos, se tornando meu jardim de infância, ensino médio e várias faculdades.

Naquele dia Mamãe voltou para a pátria espiritual. Éramos tanto amor.

Com nove anos, meu mundo era ela. Papai havia partido rumo ao seu próprio destino. Meu irmão tinha apenas três anos há mais que eu. Minha maninha dois anos mais nova que eu. Sem mamãe, era eu e o mundo.

Tantas estradas, quantos caminho nestes cinquenta e oito anos de vida encarnada.  Neles encontrei friezas, falsidades, amor, amparo, bondade, a rua, o morro (favelas), as fazendas, outros países. Em cada lugar sempre elas, as pessoas.

Fui absorvendo um pouco de cada uma das que convivi. A cada erro cometido, tinha consciência, depois de alguns mais dolorosos deles, teria que pagar por ele, de alguma forma.

É inexorável neste planeta, errou, pagou, mais cedo ou mais tarde, mesmo em uma segunda oportunidade de aqui estar, sem querer aprofundar em conceitos de doutrinas.

Entre as experiências arquivadas, o período dos festejos natalinos sempre me mostrou muito “das pessoas”.

As transformações em cada uma, de acordo com classe social, credo, equilíbrio emocional, formação, sem determinação de ordem, se sobrepõe ao verdadeiro sentido da festa; o renascimento simbólico de Jesus no coração de cada um.

Simbólico porque o 25 de dezembro, na realidade, foi escolhido quando, no ano 354, os romanos resolveram “Cristianizar” a data, aproveitando uma festa pagã que acontecia na semana do dia. Não é a data exata do nascimento do Cristo Jesus.

No Japão, onde vivi por seis anos, a tradição no Natal é comer e oferecer bolos, mas tudo funciona e se trabalha normalmente.

No Brasil, no entanto, se desenvolveu a cultura do consumismo desenfreado, manipulado por indústrias e grandes marcas.  Parcela do povo canta o Jingle Bells, escrita e composta por James Lord Pierpont (1822–1893), originalmente feita para o dia de ação de graças americano, e não para o Natal, que fala de neve e trenós; enquanto outra parte se espelha na canção do compositor baiano Assis Valente (1911- 1958), que narra o lamento da menina Paraense, Goiana, Paraibana, Baiana ou de qualquer canto deste país continente, dizendo “Eu pensei que todo mundo, fosse filho de Papai Noel, bem assim felicidade eu pensei que fosse uma brincadeira de papel… Já faz tempo que eu pedi, mas o meu Papai Noel não vem. Com certeza já morreu, ou então felicidade, é brinquedo que não tem”.

A pressão no Natal cresce, principalmente, nas famílias mais humildes, porque se torna obrigatório dar presentes, “nem que seja uma lembrancinha”, há que se comer algo melhor, já não basta a carne moída, o arroz com feijão e ovo, “pelo menos um franguinho” tem que se assar.

Os pais se consomem se não podem dar a tal “lembrancinha”, e as crianças se sentem abandonadas pelo tal Papai Noel caso não chegue um brinquedinho.

Em setembro de 2003 achei que havia cumprido minhas provas e realizado minhas expiações nesta encarnação. Morando em Nagano, na província de Nagano, no Japão, fui fazer exames de rotina e me detectaram com nefrite crônica, ou seja, meus rins estavam definhando.

A sequencia seria um transplante ou hemodiálise até morrer. Voltei ao Brasil a conselho do médico japonês “Roberto san, nossa compleição física não permitirá alcançar um rim para o seu tamanho”.

Já no Brasil, em tratamento conservador, me vem a notícia –  cumprindo seu destino de derramar amor sobre os seus, minha prima Dicilene fez o seu ato de amor maior, me deu sobrevida, me doou um de seus rins.

Um transplante com extremo sucesso, feito pela equipe do doutor João Batista, na Santa Casa de Misericórdia de Goiânia, e mantido até hoje pelo nefrologista que se tornou o guardião da minha vida, doutor Wellinton Dias da Silva.

Como estava renascendo, apesar de adulto, a palmada veio pouco mais de dois meses depois, através de uma infecção aguda nas hemorroidas. Local que mexe com toda a sensibilidade de um ser humano, mas um tantinho mais para o homem de minha geração, que em sua grande maioria, comete o erro de achar que é uma região intocável, em qualquer circunstância.

O físico, recém agredido por bisturis e com um enorme órgão que ele não reconhecia como seu, o novo rim, tremia de dores, e eu não encontrava conforto deitado, sentado, andando. Dor, muita dor.

Não houve outra alternativa ao proctologista, doutor Edmar Alves de Oliveira, a quem sou grato pela competência e coragem em me submeter, sessenta dias depois do transplante, a uma nova cirurgia, retirando todas as internas e externas infeccionadas. Foi o Natal mais doloroso de minha vida, no sentido literal da dor.

Quatorze anos se passaram desde o transplante e aquela cirurgia dolorosa, mas reparadora. Dezembro de 2018, volto ao consultório do doutor Wellinton para consulta de rotina, levo uma carraspana por alguns deslizes e pedido de uma bateria de exames.

Volto ao consultório do doutor Edmar, no cuidado necessário com a próstata que todo homem acima dos quarenta deve ter, recebo a notícia de um abcesso que precisa ser imediatamente removido. Cirurgia feita no dia seguinte.

Hoje, véspera de Natal, em casa, ainda em recuperação, com dores físicas bem menores que aquelas de 2003, mas com dores marcantes; preferi não ir a nenhum dos convites e nem receber ninguém. O celular  me trás o carinho de meu filho que está no outro lado do planeta, de toda minha família, amigos, me mantém em contato com meu médico e com o mundo.

Estaria eu me sentindo abandonado, esquecido? Ou grato  por poder sentir minha dor sozinho, me curando exatamente com as mensagens de amor e amizade que me chegam? Não tenho dúvidas, a segunda opção é minha escolha.

N’uma noite em que ouço na vizinhança fogos, forrós, músicas bregas e nenhuma oração, em um dia em que ouço apenas sobre presentes, viagens, churrascos, ceias e bebedeiras e nada sobre o aniversariante, o Cristo Jesus, minhas dores não são nada, nunca foram nada.

Me coloco nas ruas da vila de Nazaré, há 2018 anos. Vejo por lá, em dores lancinantes, Maria, Nossa Senhora, em busca de um local onde possa ter um parto natural, sem assistência médica, sem uma palavra de conforto, somente ela e suas dores.

Minha dores não são nada, diante das dores de Nossa Senhora. Aquela que colocou seu bebê em um cocho de alimentar animais quando nasceu e o desceu de uma cruz quando o viu morrer torturado e humilhado por falar de amor.

Minhas dores não são nada diante das dores de Nossa Senhora.

 

 

 

 

 

 

 

 

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