A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE FEMININA NA LITERATURA BRASILEIRA: A EVOLUÇÃO DA MULHER DE CLARISSA A MÚSICA AO LONGE, DE ÉRICO VERÍSSIMO

A mulher brasileira conquistou seu espaço após anos de submissão, desprezo e desigualdade, mas atentamo-nos para a época de silêncio que vivenciou e como era caracterizada pelo sexo masculino. As definições acerca da construção do chamado sexo frágil são muitas, dentre as quais destacamos uma fala atribuída a Santo Tomás, segundo o qual “a mulher é um homem incompleto, um ser “ocasional”.” (BEAUVOIR, 1970, p. 11, grifos do autor), pensamento este que representava o que uma boa parcela da comunidade conjecturava.

No século XVIII, a sociedade brasileira era regida pelo patriarcalismo e compreende-se que tal fato não veio do acaso ou por culpa da colonização, pois desde a existência da humanidade o homem foi considerado soberano e absoluto, devido a sua estrutura física possuir uma resistência maior, enquanto que o ser feminino é considerado o “outro”, pois precisa sobreviver mensalmente a uma descarga de hormônios, sem esquecer a gestação que transforma completamente o físico e o psicológico.

O patriarcado possuía como finalidade reunir pessoas frágeis ou pobres no regaço de um chefe forte e temido, de forma que os integrantes dessa “sagrada família” eram escravos, filhos e mulheres, sim, o patriarca detinha o poder de senhorear mais de uma esposa. As leis que regiam o país foram compendiadas pelos homens, de forma que estes beneficiaram a si e converteram essas leis em princípios que afirmavam que uma mulher que se prezasse devia casar e com sagacidade proibiam o divórcio, os anticoncepcionais e o aborto, só restava a ela aceitar a condição de dona de casa submissa e mãe.

Nesse contexto, é importante destacar que a ficção escrita a partir de 1930 constituiu-se como uma das mais ricas da história literária brasileira, uma vez que “a prosa, liberta e amadurecida, se desenvolve no romance e no conto (…)” (CANDIDO, 2000, p. 123) colaborando fortemente para que as obras retratassem os problemas do país, assumindo um aspecto de denúncia social; nessa perspectiva pode-se citar como exemplo o fato de Erico Verissimo abordar a vida complicada nas cidades gaúchas, as quais estavam sofrendo com as rápidas modificações provocadas pela industrialização, apesar de que mesmo o cenário sendo no Rio Grande do Sul, os temas em sua maioria, era recorrente em todo o Brasil. O Modernismo, sem sombra de dúvidas, foi um grande movimento na história da literatura brasileira e para Massaud Moisés e Afrânio Coutinho, dois dos maiores estudiosos deste período, Erico Verissimo foi um dos autores brasileiros da época, uma vez que ao lado de Jorge Amado compartilha êxito inquestionável junto ao público.

Para Alfredo Bosi, Verissimo pertence às tendências contemporâneas, e este ainda elucida que o romancista utilizou em suas obras uma linguagem impressionista suave, lugares comuns para retratar a sociedade gaúcha, é notável em seus enredos a influência de escritores americanos, devido ele ter traduzido diversas obras, como por exemplo, de Huxley; sabiamente usou o contraponto em seus escritos, de modo que conseguiu representar as mais diversas camadas sociais sem precisar analisar intrinsecamente os conflitos internos dos personagens, evitando assim uma trama enfadonha.

Clarissa foi o primeiro romance de Erico Verissimo, nele o leitor encontra uma história alicerçada no frescor da juventude, que apresenta a oposição entre um adulto maduro com uma adolescente pueril, representados por Amaro e a protagonista, que dá nome à obra. O enredo da narrativa denota o cenário rural e patriarcal em contradição com Porto Alegre, a descrição de ambos os lugares corroboram para a compreensão das hostilidades sociais, do machismo vigente e das tradições que permeiam a família de Clarissa. Publicado em 1933, possui uma influição do simbolismo, haja vista, que a linguagem é extremamente descritiva e pitoresca, todavia a obra cumpre seu papel de denúncia social.

Ao escrever Música ao Longe que foi publicado em 1935, Verissimo continua a narrar a vida de Clarissa que agora retornou a cidade natal, Jacarenga, atuando como professora e enfrentando junto com sua família os dramas do empobrecimento. Uma obra marcada por traços regionalistas que preza a descrição da mansão dos Albuquerque e o cenário da pacata cidade do interior com o patriarcado antifeminista, na qual a imigração é um tema bem presente e a denúncia social não deixa de ocorrer. Clarissa e Música ao Longe, duas obras escritas com destreza e que apresentam diversos temas, os quais problematizam a realidade social não só da década de 30, mas também do mundo contemporâneo, de modo que ao observar a vida da protagonista Clarissa constata-se os anseios de uma jovem mulher que almeja conquistar o seu espaço.

Os dois romances de Erico Verissimo Clarissa e Música ao Longe possibilitam vislumbrar as representações femininas nas mais variadas esferas sociais; desde a adolescente ingênua descobrindo a si mesma e ao mundo, até a mulher madura seja ela dona de casa submissa ao marido ou com relacionamento estável e infiel e ainda aquela que sustenta o lar e as regalias do companheiro, estas são as múltiplas faces da classe feminina nas décadas de 30 e 40 e que Verissimo soube delinear com maestria através da protagonista Clarissa e das personagens secundárias como Eufrasina, Ondina, mulata Belmira, Dudu e D. Clemência.

Clarissa possui uma linguagem extremamente descritiva com um narrador onisciente contribuindo para a veracidade dos fatos e para que as personagens não sejam apenas pintura do mundo real, mas criaturas autênticas e cheias de vida como afirmou o próprio autor no prefácio que escreveu para o livro em 1961, todavia percebe-se que tal fator é uma característica marcante do movimento simbolista como já foi mencionado no capítulo anterior e que marcou este primeiro romance de Verissimo, no qual também se faz presente o contraponto, um método usado para esboçar as contradições entre a doce menina Clarissa e o ressentido Amaro, ela advinda do seio de uma família rica e tradicional enquanto que ele tem sua raiz fincada em um lar humilde.

Em Música ao Longe o leitor contempla novamente Clarissa, porém já não é mais uma adolescente ingênua e sim uma jovem professora convivendo com a falência da família e suportando a frieza do pai e os vícios dos tios; o patriarcado está em decadência, grandes fábricas ousam se instalar nas casas que outrora pertenciam aos Albuquerque, pois estes para manter a boemia vão hipotecando todos os bens que possuem, restando apenas o casarão de João de Deus, pai de Clarissa, onde toda a família se abriga. É importante ressaltar que nessa obra há relatos do diário da protagonista, uma técnica literária que introduz uma narrativa no interior de outra narrativa maior, pois além do narrador ser onisciente e seu foco ser a personagem Clarissa, é possível ao leitor conhecê-la melhor através dos devaneios que escreve em seu diário.

Mediante ao que é apresentado nas duas obras citadas acima, é possível vislumbrar a literatura em caráter de denúncia social, pois o autor não poupa críticas a desigualdade social, o ócio dos homens e a submissão das mulheres, assim como expõe a dificuldade de sobreviver em cidades que estão permeadas pela queda do patriarcado rural e a ascensão da industrialização, é como afirma Antonio Candido “A arte, e portanto a literatura, é uma transposição do real para o ilusório por meio de uma estilização formal, que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos” (CANDIDO, 2006, p. 61), de modo que em Clarissa, é possível acompanhar a protagonista transitando da infância para a juventude e voltando seu olhar para o mundo que a cerca ao mesmo tempo em que o narrador faz uma crítica a sociedade e elucida seus problemas.

Como afirma Tristão de Athayde (1978), a obra Música ao Longe é marcada pelas dualidades que a vida impõe, observa-se que existe uma enorme tensão entre o feminino e o masculino, e Verissimo busca oprimir o machismo com o eterno feminino “que aparece como a própria vingança do humilhado contra o opressor, uma filosofia do anti-heroísmo belicoso como símbolo do verdadeiro heroísmo. Por isso é que, em sua obra, o chamado sexo fraco representa o sexo forte” (ATHAYDE, 1978, p. 98), ou seja, a mulher se constitui como o verdadeiro herói, porque desbravou as imposições machistas, em meio à opressão e a ausência de liberdade de expressão conquistou seu espaço e a tão sonhada liberdade; Os romances Clarissa e Música ao Longe denunciam a realidade feminina na década de 30 assim como apresentam a silenciosa e árdua revolução das mulheres que buscaram igualar-se ao sexo masculino e que apesar de terem sido hostilizadas, não precisaram agredir para conquistar o seu espaço.

¹ Mestra em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás (UFG), professora de Literatura Brasileira na Universidade Estadual de Goiás (UEG), campus Campos Belos.
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² Aluna do IV ano de Letras da Universidade Estadual de Goiás (UEG), campus Campos Belos.

 

REFERÊNCIAS
ATHAYDE, Tristão de. Erico Verissimo e o Antimachismo. In: CHAVES, Flávio Loureiro (org.). O Contador de Histórias. Porto Alegre: Globo, 1978. P. 86-102.
BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo: A Experiência Vivida. 2 ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 8 ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000.
VERÍSSIMO, Érico. Clarissa. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
______.Música ao Longe. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

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