Chapada dos Veadeiros: Museu a céu aberto

Coluna da Larissa: Literatura & Direitos Sociais – Larissa Cardoso Beltrão

Alessandra Simões*
Alessandra Simões*

Visitar a Chapada dos Veadeiros se transformou em uma autêntica experiência estética. A região, que sempre despertou a curiosidade dos turistas por suas belezas naturais, agora exibe um novo patrimônio: a arte de rua. Imagens pintadas em muros, fachadas de comércio e de residências, e até mesmo construções abandonadas, estão transformando pequenas cidades e vilas rurais em verdadeiros museus a céu aberto.

Com obras de artistas locais e de fora, muitos reconhecidos internacionalmente, a cidade de Alto Paraíso e o povoado de São Jorge, por exemplo, viraram importantes referências do grafite contemporâneo. Estas localidades também revelam um novo fenômeno cultural: a presença cada vez maior desta linguagem artística genuinamente urbana, que recentemente vem sendo feita fora dos eixos metropolitanos, constituindo-se como estilo singular em algumas regiões rurais no mundo.
Alto Paraíso não foge à regra. A cada dia, surgem novos grafites pela cidade, onde atualmente vivem cerca de 10 mil habitantes. Na avenida Ary Valadão, uma das principais vias da cidade, há diversos exemplos. A praça do skate se tornou um dos locais mais requisitados pelos artistas: belas obras podem ser vistas ao longo de toda a pista e no comércio do entorno. Uma das imagens mais recentes, um dragão cujo corpo serpenteia uma fachada pintada de verde, revela o requinte com que a tinta spray é manejada pelos artistas.
As técnicas utilizadas são as mais diversas, desde o clássico spray, passando pela pintura com pincel e rolinho. Há soluções inovadoras, como a bela imagem de uma moça cujas tranças são erguidas por passarinhos; à noite a pintura ganha iluminação especial, que valoriza seu contorno, causando uma impressão inusitada em quem passa pelo local.
O artista Wes é um dos pioneiros na cidade. Extremamente produtivo, seu estilo é marcado pela diversidade de temas, cores fortes e desenho preciso. Suas obras, de diversas dimensões, podem ser vistas em vários bairros. A fauna local, como o Lobo Guará e o Tamanduá, tem sido retratada pelo artista de forma original, em um estilo marcado por traços ligeiros e coloridos.
Recentemente, em São Jorge, o festival “Goiás em Cores” trouxe novos ares para o povoado de 500 habitantes. A cidade conta agora com belas fachadas e muros pintados com imagens extremamente refinadas, como os retratos em estilo realista de moradores locais, que parecem grandes painéis fotográficos. No local, há uma peculiaridade: a presença do artista local Moacir, retratado no filme documentário Arte Bruta, do consagrado diretor Walter Carvalho, cuja trajetória conferiu um aspecto original à cidade; a própria casa do artista se tornou uma referência com suas pinturas de forte caráter expressionista.
São exemplos como estes que vêm transformando a Chapada dos Veadeiros em um imenso museu a céu aberto. Em meio à exuberante paisagem do cerrado, cores e formas confirmam a vocação da região para a beleza e a contemplação.

Falando um pouco mais de arte…
A arte urbana tornou-se um fenômeno mundial e alcançou posição definitiva no complexo panorama da arte contemporânea. Entre as várias linguagens de arte urbana, está o grafite, nascido quase simultaneamente em Paris e Nova York, no final dos anos 1960. Com sua origem ligada às culturas jovens e de protesto, com resultados frequentemente transgressores, efêmeros, não institucionalizados, anônimos e clandestinos, o grafite ganhou o mundo e se transformou, nas últimas décadas, em uma linguagem de forte apelo visual.
Esse “novo grafite” começou a firma-se como uma linguagem autenticamente artística a partir dos anos 1980, em um contexto da arte contemporânea que vinha privilegiando a retomada da pintura, dos grandes formatos, da força cromática e da gestualidade. Os pioneiros desta transformação do grafite em arte foram Jean-Michel Basquiat [1960-88] e Keith Haring [1958-90], em Nova York, e Alex Vallauri [1949-1987], em São Paulo. Estes artistas mesclaram a influência do grafite hip-hop ao repertório da Art Pop, em uma operação estética vista ainda hoje em diversos artistas do “novo grafite”.
Os artistas do “novo grafite” utilizam principalmente os muros e fachadas de construções na cidade como suporte para pinturas em diversas técnicas. Autodidatas, oriundos da cultura do grafite hip-hop, ou ainda com formação específica em artes, eles passaram a desenvolver poéticas próprias, elaboradas de forma sistemática.
Nos últimos anos, um novo fenômeno vem desestabilizando os conceitos arraigados a respeito do caráter citadino desta linguagem estética: trata-se da realização de obras artísticas em pequenas cidades, povoados e localidades rurais, elaboradas por artistas locais ou de grandes metrópoles, cujos trabalhos estão vinculados ao estilo do “novo grafite”.
Como vem ocorrendo na Chapada dos Veadeiros, esta mudança cultural acompanha transformações expressivas no meio rural, que contribuíram para a construção de um novo paradigma acerca do entendimento das fronteiras entre o rural e o urbano. O surgimento de uma nova diversidade produtiva (e seu impacto na circulação de bens/serviços), a presença dos meios de comunicação (especialmente a internet) e o crescimento considerável do turismo são fatores que proporcionam trocas sociais, econômicas e culturais inéditas, que aproximam simbolicamente a cidade e o campo.
Curiosamente, na Chapada da Diamantina, na Bahia, também podem ser encontradas diversas manifestações artísticas visuais, como em Lençóis, pequena cidade colonial cravada nas montanhas do semiárido baiano, e o Vale do Capão, comunidade rural que abriga o projeto “Vale do Grafite”, liderado pelo artista baiano Eder Muniz, com a proposta de levar a arte urbana à região. Lençóis também tem uma particularidade: várias de suas construções foram pintadas há alguns anos pelo artista paulistano StephanDoitschinoff, conhecido como Calma. Além de pintar casas, ele criou obras para o cemitério e para uma capela, todas com a temática gráfica e mítica característica de sua obra. Reconhecido internacionalmente, o artista morou no local, submergindo na cultura da região para criar seu próprio museu a céu aberto.
*Alessandra Simões é jornalista e membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) e Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA). Doutora em artes visuais pela Universidade de São Paulo (USP), estuda o fenômeno da arte urbana.

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