As relações de gênero em I love my husband, de Nélida Piñon

Captura de tela 2015-11-04 11.52.11Captura de tela 2015-11-04 11.53.07O conto “I love my husband” foi escrito por Nélida Piñon e publicado em O calor das coisas (1980).  Narrado em primeira pessoa, trata dos enredos da vida de uma esposa conformada, educada sob o signo de uma cultura moralizadora e patriarcal. Ao longo da narrativa, mesmo depois de pensar em uma ou outra situação que não a agradou, ela afirma, tanto para si mesma, quanto para o leitor “Eu amo meu marido”, e ocupa-se imediatamente da descrição de atividades que possam favorecer sua felicidade ao lado de seu companheiro.

Embora não haja abordagem explicita, através de seus relatos, podemos notar seu posicionamento diante da sociedade e perante seu marido, a personagem é consciente de sua (in)existência. Sua vida se restringiu a ser, tão somente, a sombra do companheiro, em suas palavras “sou a sombra do homem que todos dizem eu amar” (PIÑON, 1980, p. 447)

Logo no início da narrativa, já verificamos os indícios de sua aceitação diante da opressão, bem como de sua conformidade. A narradora, de certo modo, mostra-se satisfeita com fato de permanecer em uma zona de conforto. Como assinala Simone de Beauvoir (1986) ela, como tantas outras mulheres, é uma cúmplice de sua escravização, é apenas um objeto no relacionamento:

Não posso reclamar. Sou grata pelo esforço que faz em amar-me. Empenho-me em agradá-lo, ainda que sem vontade às vezes. Sinto então a boca seca, seca por um cotidiano que confirma o gosto do pão comido às vésperas, e que me alimentará amanhã também. Um pão que ele e eu comemos há tantos anos sem reclamar, ungidos pelo amor, atados pela cerimônia de um casamento que nos declarou marido e mulher. Ah, sim, eu amo meu marido. (PIÑON, 1980, p. 449).

O excerto acima destaca o processo cíclico do enredo que começa e termina da mesma maneira. A afirmação da dominação masculina, representada pela figura do marido, nasce a partir da negação de sua condição humana, seus desejos e vontades são anulados pela falsa certeza de que as cosias precisam ser assim. Segundo Maria Consuelo Cunha Campos (1992) esta aceitação está relacionada à aceitação da naturalização de papéis, o homem, enquanto provedor, cumpre seu papel de chefe de família, cabendo a mulher, em contrapartida, assumir sua função submissa.

Outra marca que perpassa toda a narrativa é a ironia do discurso da narradora que demostra estar consciente de opressão à qual é submetida.  A certeza de estar no mundo, proporciona um momento de epifania, no qual sua identidade leva-a a enxergar o quanto tem sido subjugada pelo marido. De posse de todas essas informações, ela decide se ocupar do futuro:

Ele deixou o jornal de lado, insistiu que eu repetisse. Falei da palavra futuro com cautela, não queria feri-lo, mas já não mais desistia de uma aventura africana recém-iniciada naquele momento. Seguida por um cortejo untado de suor e ansiedade, eu abatia os javalis, mergulhava meus caninos nas suas jugulares aquecidas, enquanto Clark Gable, atraído pelo meu cheiro e do animal em convulsão ia pedindo de joelhos o meu amor. (…) A pele ardente, o delírio, e as palavras que manchavam os meus lábios pela primeira vez, eu ruborizada de prazer e pudor, (…) eu deixava então o Clark Gable amarrado numa árvore, lentamente comido pelas formigas. Imitando a Nayoka, eu descia o rio que quase me assaltara as forças, evitando as quedas d’água, aos gritos proclamando liberdade, a mais antiga e miríade das heranças (PIÑON, 1989, p. 450).

Depois de receber uma negativa do marido que não quis responder ao seu questionamento, a narradora convida-o a pensar no futuro. Embora a abordagem não tenha sido tão direta “que tal se eu após tantos anos mencionasse o futuro como se fosse uma sobremesa?”, ele, como era de se esperar, não reage bem ao comportamento da mulher. Ela, por sua vez, entre o real e o devaneio coloca-se a pensar em um outro mundo, com experiências bem diferentes das que vive entre a cama e o fogão.

Ao dar conta da de perda sua identidade, a narradora põe-se a buscá-la. Imersa em seus pensamentos, a memória insiste em visitar os conselhos da mãe, a satisfação do pai ao vê-la recebendo uma educação para o casamento e, como reflexo deste processo, encontrara-se agora diante do comportamento machista do marido. Em “I love my husband” a família é apresentada como a principal incentivadora da dominação masculina, como sugere Pierre Bourdieu (2005, p. 103) “É, sem dúvida, à família que cabe o papel principal na reprodução da dominação e da visão masculinas; é na família que se impõe a experiência precoce da divisão social do trabalho e da representação legítima dessa divisão”.

A súbita tomada de consciência da personagem rendeu-lhe algumas consequências, diante dos argumentos apresentados pelo marido “Falou-me das despesas mensais. Do balanço da firma ligeiramente descompensado” (PIÑON, p. 446), o processo de epifania deu espaço à resignação. A mulher se envergonha de sua atitude e, mais uma vez, no espaço cama e cozinha, tentará agradar ao marido, afinal de contas, como ela faz questão de afirmar “Eu amo meu marido.” (PIÑON, p. 444).

Captura de tela 2015-11-04 12.09.47O marido, neste momento, reassume sua condição de dominador, enquanto a mulher volta ao seu local de origem: a margem. O conflito de identidade segue até o final da narrativa, vez ou outra, a narradora precisar afirmar, para si mesma e para o leitor, “Ah, sim, eu amo meu marido”. (PIÑON, p. 449). Segundo Lúcia Osana Zolin (2003), “I love my husband” é perpassado por jogo ambíguo, no qual os opostos se completam. De um lado a mulher-sujeito, marcada pela rebeldia e inconformismo; do outro, a mulher-objeto, cujas imposições familiares são suas principais referências. Esta última mulher, presa ao senso-comum, é a que prevalece ao longo do enredo.

Dividida entre a dominação e a submissão, podermos afirmar que a personagem de Nélida Piñon é mais um exemplo de mulher em busca de sua identidade: mulher/esposa/mãe. Não obstante, é importante destacar ainda que, ao longo da narrativa ao considerar a função de dominador assumida pelo marido, a narradora passa por três momentos: submissão, epifania e resignação. O conflito entre as duas mulheres, sujeito e objeto, fica evidente nas sobreposições de pensamento, sendo a vitória da mulher-objeto afirmada tanto pela sociedade patriarcal, quanto pelo modelo familiar tradicional.

 

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