ARTIGO – Negro tem couro duro, pode apanhar!

Andra Martins Ribeiro**

Pode parecer exagero, mas o olhar da branquitude em relação à mulher negra, ao homem negro, à criança negra ainda é o olhar da casa grande. Infelizmente. É como se a mulher, a criança, o homem negro fossem resistentes a tudo. São guerreiros, logo, conseguem desbravar o mundo e, inclusive, carregá-lo em suas costas. Uma criança negra, desde cedo, deve aprender a se virar nos quartinhos apertados, pegar ônibus lotado e, inclusive, apanhar, já que o couro do negro resiste a tudo.

Quando criança, eu sentia isso na pele. Meu pai era vaqueiro em uma fazenda. Éramos quase da família da patroa. Lembro-me de que, quando chegavam as férias das filhas da patroa, minha mãe não tinha tempo pra gente. Era o tempo em que tínhamos de tomar banho sozinhos, tirar os piolhos, fazer as atividades domésticas com mais agilidade e eficiência. Era um prêmio receber elogios da patroa, por isso, nos esforçávamos para que nada desse errado. Minha mãe, por sua vez, tratava as doces meninas como porcelanas, pois, a um pequeno toque, poderiam se quebrar.

Por isso, o meu irmão mais velho era o encarregado para lhes ensinar andar a cavalo. Ele segurava o cabresto e passeava quase o dia todo com as princesas. Quando cansavam, lá estava meu irmão, com o maior cuidado do mundo, ajudando-as descer.

– Saem do sol, meninas! Dizia a minha mãe às filhas da patroa.

– Vá lavar as vasilhas, menina! Anda logo! Dizia minha mãe à minha irmã mais velha.

Mas o engraçado era que o Girau ficava debaixo de um sol escaldante. De lá da sua frondosa área, a patroa dizia:

– Suas filhas são bem criadas, heim!

E assim passavam os dias felizes na fazenda. As crianças brancas não podiam subir nos pés de manga. Assim, elas recebiam a fruta escolhida em suas mãos rosadas e macias. Não podiam pisar na lama, então, o meu pai construía passagens.

Era incrível perceber que nós crianças também tínhamos o dever de facilitar a vida das nossas amigas, quase da nossa família. Não podíamos, sequer, ganhar uma brincadeira. Numa das tantas brincadeiras de rico, lembro-me de ter sido a campeã. Saí super feliz para contar a vitória à minha mãe. De longe, escutei a filha perdedora da patroa chorando.

– Mãe, eu consegui montar o brinquedo primeiro que …

– É por isso que ela está chorando?

– sim, mãe.

– Vá lá e fala que você perdeu. Agora!

Eu fui, subserviente, até à sala onde estava a perdedora. Disse que eu havia perdido o jogo…

Desde ontem, fiquei pensando no Miguel. Tentei me colocar também no lugar da patroa. Só que aí eu me lembrei do quanto fui Miguel na vida. Lembrei-me da quantidade de vezes que perdi só para alguém manter o seu posto de vencedora. Lembrei-me das vezes que saí na chuva para pegar a sandália da minha amiguinha branca, pois ela , frágil, não podia se molhar. Lembrei-me de quando eu disse que havia derrubado o vidro só pra ela não levar uma bronca. Lembro-me de ter pensado : “Tadinha, ela não pode apanhar!”

Lembro-me de ser quase da família e, por isso, era preciso manter o laço, sendo grata a cada gesto, a cada sim, a todos os nãos.

A gente que é preto aprende desde cedo que cuidar do filhinho da patroa é mais urgente. Do nosso, a gente cuida depois. Mesmo porque o filhinho da patroa é quase da nossa família, né?

Tem gente que acha que tudo isso ficou lá no tempo da escravidão. Tadinha dessa gente! Essa gente acha que ser quase da família é uma sorte. E que sorte a nossa, né? Ter um couro duro. Ser forte. Ser guerreiro e resistente. A gente pode se virar num elevador. Pode atravessar a rua sozinha. Pode ficar, sozinha, em casa, enquanto a nossa mãe não chega. Pode sair na chuva. Pode ficar horas e horas no sol. Que sorte a nossa, Deus! A gente pode até apanhar!

E continuar duro e forte e guerreiro e resistente e forte e guerreiro e duro e forte e resistente e forte e duro e resistente a tudo…

Andra Martins Ribeiro*** é graduada em Letras Português/Inglês pela Universidade Estadual de Goiás (2006). É especialista em Docência do Ensino Superior pela Universidade Cândido Mendes. Foi professora de Literatura na Universidade Estadual de Goiás (UEG). Atualmente, é mestranda pela Universidade Federal do Tocantins (UFT) e exerce a função de professora de educação básica nas Secretarias de Educação dos Estados de Goiás e Tocantins.

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