ARTIGO – Cuidar com inteligência: quando estratégia vira saúde.

A Atenção Primária à Saúde (APS) precisa ser o lugar onde se acolhe, orienta, acompanha, previne e trata. E para isso, precisa estar organizada, planejada e com os processos de trabalho funcionando com intencionalidade.

POR: Junior Romualdo*

Você já parou para pensar que um único atendimento bem feito pode mudar o rumo da vida de uma pessoa — e ao mesmo tempo fortalecer toda a rede de saúde do município? É exatamente isso que acontece quando a Atenção Primária à Saúde assume com protagonismo o cuidado das condições crônicas como hipertensão, diabetes e os desafios do envelhecimento.

Esse artigo é um convite: para refletir, reorganizar, cuidar melhor e mostrar, com exemplos concretos, que é possível transformar realidades e ainda garantir mais recursos para a saúde. Se você trabalha, apoia ou acredita no SUS, vale a pena ler até o fim.

Vivemos um tempo em que o perfil de saúde da população mudou – e continua mudando. Doenças infecciosas, que antes eram a principal causa de adoecimento e morte, deram lugar a outro tipo de desafio: as doenças crônicas. Estamos falando de hipertensão, diabetes, doenças cardiovasculares e respiratórias, câncer, depressão, entre outras.

Essas condições não surgem de forma isolada. Elas estão diretamente associadas ao modo como vivemos hoje: alimentação baseada em produtos ultraprocessados, sedentarismo, consumo excessivo de açúcar e gordura, estresse, uso de álcool e tabaco. A isso se soma o envelhecimento populacional acelerado, fruto de uma transição demográfica histórica: vivemos mais — mas com mais doenças crônicas.

O desafio do século: cuidar de uma população que envelhece e adoece

O Brasil, assim como o mundo, está envelhecendo. De acordo com projeções do IBGE, em menos de duas décadas teremos mais pessoas idosas do que crianças no país. E os dados do Ministério da Saúde já mostram que quase 75% das pessoas idosas têm ao menos uma condição crônica. Em muitas regiões, essa taxa é ainda maior. Isso significa que as Unidades de Saúde da Família estão, todos os dias, diante de um grupo de pessoas que precisam de acompanhamento contínuo, cuidado coordenado e uma atenção que vá além da consulta pontual. São pessoas com hipertensão, diabetes, limitações físicas ou cognitivas, que tomam vários medicamentos e precisam de orientações práticas sobre como viver melhor com saúde.

A Atenção Primária à Saúde (APS) é a protagonista desse cuidado

Segundo Barbara Starfield, referência mundial em atenção primária, “os sistemas de saúde orientados pela APS são mais efetivos, mais equitativos e produzem melhores resultados de saúde com menores custos.”

É a APS que deve organizar o cuidado. Ela é a porta de entrada, mas também a base da pirâmide do SUS. É onde a vida das pessoas acontece: no território, na comunidade, com vínculo. A APS precisa ser o lugar onde se acolhe, orienta, acompanha, previne e trata. E para isso, precisa estar organizada, planejada e com os processos de trabalho funcionando com intencionalidade.

Cuidar bem faz bem – inclusive para o orçamento

Além dos benefícios para a saúde da população, a organização da APS impacta diretamente o financiamento da saúde nos municípios. A Portaria GM/MS nº 3.493/2024, que rege o novo financiamento da APS, criou o Componente Qualidade, que define indicadores prioritários para acompanhamento federal. E três deles dizem respeito ao cuidado com pessoas idosas, pessoas com hipertensão e pessoas com diabetes.

Isso quer dizer que, quando a equipe realiza boas práticas com esses grupos — como consulta médica ou de enfermagem, registro de peso e altura, visitas domiciliares e orientações sobre saúde — o município recebe um incentivo financeiro adicional. Ou seja: cuidar bem melhora a vida das pessoas e fortalece o caixa da saúde.

Um só atendimento, três impactos.

Imagine só: um idoso com hipertensão e diabetes. Em uma única consulta bem feita, é possível:

– Aferir a pressão arterial

– Verificar peso e altura

– Avaliar os pés (no caso da diabetes)

– Atualizar a vacinação

– Orientar sobre alimentação e atividade física

– Registrar tudo com os códigos corretos no prontuário

Esse contato vale para três indicadores ao mesmo tempo: o de pessoa idosa, o de hipertensão e o de diabetes. É isso que chamamos de cuidado integrado. É mais eficiente, mais resolutivo e valoriza o tempo da equipe e da pessoa atendida.

Mas para isso acontecer… é preciso organização.

A APS só consegue fazer esse cuidado integrado se tiver rotinas bem definidas e processos organizados. Isso envolve:

– Criar agendas específicas para acompanhamento de condições crônicas

– Fazer busca ativa de quem está sem atendimento

– Garantir ao menos duas visitas domiciliares ao ano por ACS

– Usar os dados dos sistemas de informação para planejar ações

– Trabalhar em equipe, com apoio da eMulti quando necessário

– Capacitar continuamente os profissionais da ponta

Como disse Eugênio Vilaça Mendes, grande referência em redes de atenção no Brasil:

“As doenças crônicas exigem um cuidado coordenado e contínuo. Elas não se resolvem com ações pontuais. Precisam de redes bem articuladas, com uma atenção primária forte à frente.”

Conclusão A realidade epidemiológica nos chama à ação. O crescimento das doenças crônicas, o envelhecimento da população e os efeitos de um estilo de vida cada vez mais urbano e industrializado exigem uma APS forte, resolutiva e comprometida. E essa APS só se fortalece com:

– Planejamento

– Acompanhamento

– Organização do processo de trabalho

– Uso inteligente dos dados

– E, acima de tudo, com compromisso com o cuidado das pessoas

Cuidar de quem tem diabetes, hipertensão ou é idoso não é só uma tarefa clínica. É uma estratégia de saúde pública, é uma ação de justiça social e, agora mais do que nunca, é também uma chave para garantir recursos e sustentabilidade do SUS.

Bibliografia consultada:

– Portaria GM/MS nº 3.493, de 10 de abril de 2024

– Ministério da Saúde – Fichas Técnicas de Qualificação: Cuidado da Pessoa com Diabetes, Hipertensão e Pessoa Idosa.

– Starfield, Barbara. Atenção Primária: Equilíbrio entre Necessidades de Saúde, Serviços e Tecnologia. Brasília: UNESCO, 2002.

– Mendes, Eugênio Vilaça. As redes de atenção à saúde. OPAS, 2011 IBGE – Projeções populacionais, 2023.

– Organização Mundial da Saúde – Relatórios sobre doenças crônicas não transmissíveis e envelhecimento, 2022

** Junior Romualdo é consultor em gestão de saúde pública, Gestor Público e especialista em Gestão de Sistemas de Saúde, com MBA em Gestão de Saúde pela FGV. Atua como consultor em gestão de saúde para vários municípios brasileiros, apoiando a qualificação da Atenção Primária e do financiamento do SUS.

Share

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *