ARTIGO – Alto Paraíso: Jardim para Cultivo da Tolerância e da Paz
Na atualidade, enfrentamos vetores de mudança cada vez mais poderosos – porque são cada vez mais velozes e mais inter-relacionados. Hoje, somos muitos, e todos nós temos problemas e dificuldades comuns, como o fato de ainda não percebermos qual é a relação entre os nossos comportamentos, nos diferentes locais, e a realidade global. Ainda parece não estar claro para nossa sociedade como a mudança de atitudes individuais pode levar à mudança da ação coletiva, cujo resultado será a melhoria dos sistemas de vida, em escala global.
A atomização da sociedade contemporânea, com a desagregação das estruturas sociais tradicionais e a orientação desenfreada para os resultados imediatos, colocou a humanidade no atual ponto de ruptura mundial. É indiscutível que o mundo vive um processo de profundas transformações, nos domínios da cultura, da sociedade, da economia, da comunicação, da biosfera, dentre outros.
De outro lado, muitas comunidades, sobretudo aquelas com presenças centenárias de ocupação de seus territórios, têm perdido suas memórias, numa crise de “amnésia coletiva”. Elas têm perdido a referência cultural, esquecido os valores e as famílias, desvalorizado as origens, desprezado os patrimônios e abandonado os pilares de sustentação dos símbolos e arquétipos essenciais à vida de uma comunidade.
Assim, uma reflexão nos surge: em Alto Paraíso, à medida que a cidade cresce, a ruptura com o passado torna-se inevitável? O enfraquecimento da memória cultural, das tradições e dos valores sociais estão desvinculando o homem alto-paraisense de suas raízes, alienando-o, impossibilitando-o de compreender como e porque se dão as transformações econômicas, políticas, socioambientais e culturais no município. Nessa esteira, se nenhuma ação for realizada para minimizar os efeitos da crise global que assola o conjunto da sociedade local, os cidadãos sentirão cada vez mais a falta dos elos que dão sentido aos acontecimentos cotidianos, tornando a comunidade cada vez mais apática e alienada de seu próprio destino. E o que acontece com uma comunidade que esquece seus valores e suas referências de cidadania? Que não observa, por exemplo, os dilemas da ocupação desordenada em seu território? São cenários sobre os quais devemos aprofundar nosso olhar e nossa atenção.
Duas questões ocupam lugar de centralidade na atualidade planetária: o grau de conexões que a humanidade atingiu, tornando-a interdependente, e o final da ideia de que a natureza existe para satisfazer os desejos humanos. Hoje é claramente perceptível que a maneira como escolho me relacionar com o mundo, com meu individualismo ou meu altruísmo afeta a todos, bem como a minha omissão repercute não apenas na minha própria vida, mas na do planeta como um todo.
O homem transformou o mundo, sobretudonos últimos séculos. Por isso, é imperativo desenvolver a capacidade de sair de si mesmo rumo ao outro, criando uma atitude basilar de se autotranscender, rompendo com a consciência isolada e a autorreferencialidade. É necessário voltar a sentir que precisamos uns dos outros, que temos uma responsabilidade para com os outros e o mundo. Em verdade, devemos refletir que o sentido de comunidade somente existe depois das escolhas individuais, não antes.
Em razão do nosso cotidiano de mudanças contínuas, velozes, interdependentes e multifacetadas, não por acaso, somos, na atualidade, chamados a construir um novoethos de justiça, responsabilidade e respeito às diferenças (“nativos e alternativos”, por exemplo) ,elementosfundamentais para a manutenção da vida em sociedade.
Dialogar sobre cultura de paz é essencial para nossa humanidade e para Alto Paraíso, especialmente, no atual quadro de esvaziamento de sentido em que vivemos, em que as incertezas imperam sobre o sentido de esperança e, sem paz interior, é impossível uma cultura de paz na sociedade. Também por isso, é fundamental a difusão de uma relação amorosa com a realidade, em que o cuidado de uns para com os outros possa fazer desaparecer o medo, a origem secreta de toda violência.
Recuperar a memória coletiva, os contextos históricos e ressignificar o cidadão de Alto Paraíso deve ser uma meta para todos, sobretudo, porque a cultura da paz também começa quando se cultiva a memória da própria comunidade, por meio dos exemplos de indivíduos que representam o cuidado e a vivência da dimensão de generosidade que nos habita.
Importa, como meta da comunidade de Alto Paraíso e também planetária, fazermos as revoluções moleculares, começando por nós mesmos. Cada um de nós pode estabelecer, como projeto pessoal e coletivo, a paz como método e como meta, paz que resulta dos valores da cooperação, da liberdade, da igualdade, da fraternidade, do cuidado, da compaixão e da amorosidade vividos cotidianamente.
Quando nós estamos em paz, somos conscientes. E as ações conscientes podem nos ajudar a encontrar respostas para a pergunta que desafia a todos: como posso ser feliz? Nós criamos uma sociedade em que as pessoas acham cada vez mais difícil demonstrar um mínimo de afeto aos outros e, talvez por isso, estejamos cada vez mais infelizes. Em vez da noção de comunidade e da sensação de fazer parte de um grupo, de um coletivo, encontramos um alto grau de solidão e perda de laços afetivos. Somos hoje uma humanidade isolada em si mesma, quase desumanizada.
O descaso pela dimensão interior do homem fez com que os movimentos sociais tenham deixado de produzir os benefícios que deveriam ter proporcionado ao mundo. Por isso, é fundamental promovermos uma revolução espiritual, uma vez que a espiritualidade está relacionada com aquelas qualidades do espírito humano — tais como amor, compaixão, paciência, tolerância, capacidade de perdoar, contentamento, noção de responsabilidade, noção de harmonia — que trazem felicidade tanto para a própria pessoa quanto para os outros.
A vida nos orienta à percepção clara de que o mundo que nos circunda é inseparável de nós mesmos. Assim, se fizermos o bem para os demais seres e para o ambiente, estamos cuidando de nosso próprio bem. De outro lado, se causarmos mal aos outros e ao ambiente, estamos causando mal a nós mesmos. Todos estão ligados uns aos outros, todos dependem uns dos outros.
Também é importante refletir que a paz genuína emerge como resultado da paz interior, portanto ela começa no nível individual e, a partir do indivíduo, essa paz pode ser compartilhada com a família, com a vizinhança e a cidade. A paz interior é a base da confiança em si e no outro, sendo a base para a paz na sociedade. Por isso, desenvolver uma cultura de paz está, em última análise, relacionado com o desenvolvimento da compaixão pelos outros.
Vivemos o momento de um apogeu do individualismo, e, por isso, é preciso empreender esforços permanentes, no cotidiano, para minimizarmos os efeitos da chamada globalização da indiferença.
É consabido que a paz e a prosperidade não se conquistam unicamente com base em arranjos sociopolíticos ou econômicos. Também é do conhecimento de todos que falar em cultura de paz é falar dos valores essenciais à vida democrática,tolerância, diálogo, reconciliação, solidariedade, desenvolvimento e justiça social.
Alto Paraíso precisa que nos mobilizemos em favor da paz, do diálogo, da cooperação, da convergência e da não violência, as quais devem tornar-se realidade cotidiana para todos. Mas como fazer da cultura da paz uma realidade duradoura no cotidiano dos indivíduos? Como fortalecer a consciência sobre a urgência de se promover a transição para uma cultura da paz? Como fomentar a tolerância e a harmonia entre “nativos” e “alternativos”? Como encontrar os caminhos e meios para alterar os valores, atitudes, crenças e comportamentos que induzem à intolerância individual e social?
O estabelecimento de uma cultura de paz requer profunda participação de todos. Por isso, nesse quadro de policrises, perguntamo-nos: de que forma os processos globais e toda a gama de dilemas que nos são colocados na atualidade, com crises multifacetadas e sinérgicas, impactam a vida de cada um de nós, em Alto Paraíso?
O atual momento nos convoca a uma série de indagações sobre o presente e o futuro, por exemplo: a sociedade, em Alto Paraíso, formada pelos que aqui nasceram e pelos que adotaram o município como lar, conseguirá superar os desafios locais para implantar um programa coletivo transformador, ancorado em valores humanos, com ações altruístas e que possam transformar, para melhor, a realidade do território?
Épossível e desejável por muitos construir um projeto comunitário que possa transcender sectarismos e limitações das crenças, filosofias e doutrinas religiosas, unificando ações em benefício de toda população?
Essas são algumas das inquietações sobre as quais devemos refletir, visando ao exercício da cidadania, da ação com corresponsabilidade, da participação social e da difusão de valores humanos, visando ao fortalecimento de redes de cooperação altruísta a serviço da paz.
Construamos todos uma nova visão de mundo e a difusão da ética do cuidado, com base nos cidadãos de Alto Paraíso, integrando ideias, processos e iniciativas pela paz, propondo demonstrar que o mais importante em tudo não são os recursos em si, mas as pessoas.
Também deve ser parte de nosso esforço colaborativo fazer lançar bases reflexivas para um novo momento de união e cooperação, compartilhando ideias e ideais de transformação solidária, pacificadora e inclusiva e que introduza um pensamento numinoso capaz de criar um pacto pela paz, e de unir e reunir inteligências para criar uma aliança em favor da paz na sociedade, uma aliança que acolha e envolva os cidadãos, todos juntos, ancorados no propósito da felicidade e da harmonia coletiva.
A jornada é longa, mas tambémé bela. Comecemos, pois, a caminhar, juntos. O tempo para fazer prosperar a intolerância deve findar-se. De igual maneira, o tempo para cultivar a paz no jardim de Alto Paraíso deve nascer em nossas mentes, nossos corações e nossas ações. O momento é de semeadura da paz. Bom cultivo a todos.
Luiz Oliveira é Filósofo, PhD, Teólogo, Presidente do Instituto Espinhaço, Especialista em Programas Estratégicos para o Desenvolvimento Sustentável e articulador da plataforma dos 17 ODS/ONU