Doutrina – RECORDAR É VIVER
Acabara de acordar ainda meio sonolento por volta das quatro horas da manhã. Olhei em volta, tudo era escuridão cortada apenas pela TV ligada e chiando, pois o canal estava fora do ar para manutenção. Era uma segunda-feira e a semana iniciava naquele instante para mim. Levantei-me e me preparei para vestir roupa de hidroginástica que pratico a mais de quinze anos na piscina aquecida da professora Áurea, juntamente com Ednaldo, seu marido, velhos amigos de outras jornadas.
Vesti o roupão por cima do short, toalha de banho e sacola com a sunga, pronto para os exercícios após muitos anos de caminhadas diárias de doze, depois oito e, finalmente, quatro quilômetros antes de ter de parar definitivamente porque o peito arde violentamente em face dos problemas cardíacos que me atacaram, ao longo da vida, atingindo a musculatura peitoral.
A cada sessão de hidro o papo rola gostoso sempre voltado para as estripulias do Gabriel, filho caçula de Christiane, a filha mais nova de Áurea, ou, então, para alguma lembrança do passado, ou ainda, histórias das famílias nordestinas do casal Ednaldo/Áurea, ou então qualquer outra coisa, ou assunto, muitas vezes, da política ou dos políticos do Brasil.
Ednaldo tem uma capacidade impressionante de se lembrar de sonhos e sua narrativa é enriquecida com detalhes marcantes revelando que, em algum tempo do passado, frequentou a mesa de reis e de nobres, onde se fartou de alimentos os mais sofisticados e elaborados com requintes tanto de enfeites quanto de sabores inusitados.
Ouço as suas histórias oníricas e me surpreendo com a sua capacidade de se recordar como se o evento tivesse acabado de acontecer, ou se contasse o que via numa tela cinematográfica cujas cenas estivessem acontecendo naquela hora mesmo.
A impressão também causa, em mim, uma espécie de admiração extraordinária imaginando aquele amigo, que nesta encarnação é um homem comum, simples, sem afetação, frequentando e convivendo com grandes figuras políticas, monarcas e a melhor nobreza de todos os quadrantes deste Globo Terreno!
Áurea, por sua vez, falante, mirrada de corpo, inteligência invulgar, metódica nos quefazeres da vida, desperta nas histórias do nordeste do seu nascimento, contando passagens de Camilo que foi seu pai carnal nesta viagem ao Mundo material, toda uma admiração e uma inefável tranquilidade das criaturas de paz, enxergando a vida pelo prisma do otimismo e do bem-querer. No entanto, não me esqueço quando, ainda orgulhosa, cobrou-me um dizer que eu não dissera e que me fora colocado na boca pela então minha companheira. Áurea fora dura impondo-me a pecha de fuxiqueiro que desprezara sua casa taxando-a de pobre e que primeiro atenderia a um convite mais refinado de outro casal. Tinha sido uma trama bem urdida pelas trevas em conluio com minha companheira para me indispor com a família de Ednaldo/Áurea, pois nossa amizade, considerada irretocável impedia a ação nefasta dos irmãozinhos trevosos.
Áurea mostrou-se zangada comigo e mesmo lhe respondendo que eu nada fizera ou dissera daquilo que me acusava, não tive a capacidade de demonstrar que se tratava de um trabalho dos nossos irmãos ainda perdidos nos desvãos da vida. O clima se tornou pesado e não fora a intervenção de Ednaldo que, com serenidade e discernimento, apaziguou os ânimos da esposa, não poderia como acabei podendo novamente adentrar aquela casa, ainda com os olhares desconfiados de Áurea. Já se vão mais de trinta anos entre aquele episódio e os dias de hoje. Áurea não deve se lembrar mais deste episódio, fácil de se ver pelo tratamento que tem me dispensado. E só me lembrei agora porque naquela ocasião fiquei triste pela confusão armada, na qual jamais gostaria de me encontrar.
Não conheço inimigos e se os tenho devem estar nas sombras, mas, mesmo assim eu os quero na luz da razão e do entendimento, pois apenas o amor constrói, enquanto o ódio, o rancor, a ira, são sentimentos destrutivos que só causam danos a quem os têm e àqueles que se deixam atingir ou desenvolver atitudes de beligerância.
Não guardo nenhum rancor ou qualquer outro sentimento reprimido.
Na vida e com a vida aprendi uma expressão tão importante: “Oh! quão bom é que os irmãos vivam em união!”.
A verdadeira amizade transcende os tempos, rompe todos os obstáculos e vence todas as querelas, impondo a serenidade, o respeito e a consideração como qualidades ou virtudes indispensáveis aos verdadeiros amigos e irmãos de jornada.
Lembremo-nos de Jesus que mesmo judiado, espancado, cuspido, coroado de espinhos, pregado numa cruz e ainda assim amou aqueles que se diziam seus inimigos, rogando:
– PAI, PERDOA-LHES PORQUE NÃO SABEM O QUE FAZEM.
Amemos com a intensidade do amor maior, com a doçura do bem-querer, com a ternura de mãe acarinhando seu bebê, para que também nosso Pai que está nos céus, nos ame sempre e para sempre.
Recordemo-nos de todos os lances da vida terrena que nos tornaram felizes para que proporcionemos somente alegrias e bem-querer a todos indistintamente, lembrando-nos de que recordar é viver.
POEMA
Ah! quão bom,
esse teu tom,
de harmonia e paz!
Seja tua vida,
mais querida,
sempre capaz!
E teus sonhos,
todos risonhos,
que o anjo traz!
Seja felicidade
e igualdade
que tua vida faz!