O NASCIMENTO E A FORMAÇÃO DA HEROÍNA ANA TERRA, DE ÉRICO VERÍSSIMO
“Uma geração vai, e outra geração vem; porém a terra para sempre permanece. E nasce o sol, e volta ao seu lugar onde nasceu. O vento vai para o sul, e faz o seu giro para o norte; continuamente vai girando o e volta fazendo seus circuitos.” ECLESIASTES – I, 4, 5, 6
Escrito à princípio como uma dos capítulos de O continente, um dos romances da trilogia O tempo e o vento, de Érico Veríssimo, Ana Terra tornou-se uma publicação independente, podendo ser considerado um bildungsroman que, em português pode ser compreendido como “romance de formação. Sob o aspecto gramatical, bildung = formação e roman = romance, mas em alemão, idioma de origem, refere-se a um subgênero do romance no qual há uma tensão entre o homem e o mundo das instituições ao qual ele pertence, ou seja, o romance de formação “representa a formação do protagonista em seu início e trajetória até alcançar um determinado grau de perfectibilidade”, levando dessa forma, ao desenvolvimento do próprio leitor (MORGENSTERN apud MAAS, 2000, p. 19).
O enredo do romance ocupa-se na história de uma família tradicional, como tantas outras: o pai Maneco Terra, a mãe D. Henriqueta, Horácio e Antônio filhos do casal e Ana Terra, a única mulher. Os Terra vivem em uma estância, onde cultivavam a denominada economia de subsistência. Os homens cuidavam dos afazeres da lida, enquanto as mulheres se encarregavam das obrigações domésticas. E é nessa atmosfera que se forma Ana Terra, a heroína do romance que, ao longo do romance, faz a observação “Sempre que me acontece alguma coisa importante está ventando”. (VERÍSSIMO, 1997, p. 73).
Ela, como todas as meninas gaúchas de seu tempo, foi criada sob o signo da obediência. Seu destino era comandado por seu pai até o dia em que o caminho de Pedro Missioneiro se cruza com o seu. A leitura da obra Ana Terra de Erico Veríssimo permite-nos refletir sobre a imagem da mulher do século XVIII. A partir da trajetória de sua personagem principal, uma jovem de personalidade forte que enfrenta o destino cruel de engravidar de um índio, perder toda sua família e ser obrigada a deixar as terras para viver em outro lugar. Percorreremos o caminho da forte e brava Ana Terra, com intuito de discorreremos a respeito da visão social, destacando o papel que a mulher desempenhava no contexto familiar, assim como sua persistência e o instinto maternal. Tendo em vista que ela, ao longo da narrativa, se constitui como uma guerreira perseverante que resiste ao autoritarismo masculino da época. No decorrer deste trabalho enfatizaremos com mais detalhes as angústias da figura feminina gaúcha.
Nesse sentido, sabemos, pois, que a visão da mulher tem sido associada e limitada desde muito tempo aos afazeres domésticos: ser mãe, esposa e dona de casa. Não se levando em consideração a sua importância fora dos limites do lar. Estes são realmente os paradigmas que elas buscam jogar por terra desde muito tempo. No século XVIII, o sexo feminino era visto naturalmente frágil, já que o detentor da força era o homem, o qual possuía autoridade máxima sobre a mulher, de forma que, antes do casamento associado à imagem do pai e após o casamento a dominação era passada ao marido.
Érico Veríssimo nos apresenta com destreza um enredo literário que retrata de forma precisa como era a condição feminina dentro de uma sociedade extremamente machista, que tratava assuntos como a sexualidade de forma totalmente obscura, uma mulher que se valorizasse jamais poderia tratar essas questões nem mesmo com o próprio marido. Nos ambientes sociais, as mulheres eram tratadas como “objetos decorativos”, jamais em meio á um evento ou jantar poderiam interagir ativamente, e nem tão pouco demonstrar suas vontades, assuntos como: política e economia, que eram restritos aos homens.
É importante destacar que, é nesse período que verificamos as influências do Iluminismo e da Revolução Francesa, que vinham da Europa, trazidas por aqueles jovens brasileiros que eram enviados pelos pais para estudar, e quando voltavam vinham carregados de visões renovadoras que propunham liberdade, e sem dúvidas podemos ver esses anseios na literatura da época, que apresenta a mulher sobre uma perspectiva diferente, uma mulher capaz de sobreviver mesmo sem as figuras masculinas que eram vistas como porto-seguro.
Nesse período, a economia do Rio Grande do Sul baseava-se na pecuária, e, além disso, este estado estava enfrentando diversos conflitos, de forma que os homens se ocupavam mais das atividades políticas, criação de gado e das guerras, enquanto que as mulheres se tornavam responsáveis pela subsistência familiar. Apesar de haver nessa época muitas esposas comandando estâncias e chefiando a família, estas ainda eram submissas à autoridade masculina.
No romance Ana Terra, podemos contemplar inicialmente uma jovem gaúcha que se dedica extremamente as atividades domésticas: “Os Terras tinham acabado de comer e Ana tirava da mesa os pratos de pó-de-pedra”. (VERISSIMO, 2006, p.17). Representando assim uma parcela das mulheres do sul que se dedicavam ao lar, e como uma jovem solteira, a protagonista desta obra estava sendo preparada para o papel de esposa e mãe futuramente, já que o casamento era considerado um ritual para a sociedade.
Mas Ana quebra todos os paradigmas sociais acerca da pureza de uma moça, ao engravidar de Pedro Missioneiro, um índio, de forma que se inicia uma nova fase em sua vida: a maternidade. A partir desse momento, a moça se vê desprezada pelo pai e pelos irmãos e seu contexto familiar se torna ainda mais conturbado. Mas o ponto culminante da obra é quando a jovem perde a família em um massacre, e a partir de então passa a representar outras camadas de mulheres que precisam suster a casa e cuidar da estância e dos filhos sozinhas.
Veríssimo, com toda sua maestria criou uma protagonista que possui a capacidade de representar todas as figuras femininas do Rio Grande do Sul, desde a que está no poderio do pai e dos irmãos ou marido, até aquela que cuida da estância sozinha, mas que não deixa de ser objeto do machismo. No prelúdio da obra, Ana Terra se submete a autoridade do pai, mas quando o perde, ela se abriga nas terras de Ricardo Amaral, de forma que apesar de sua “autonomia”, estará sempre condicionada a um homem.
No desenrolar da trama, diante das dificuldades que a protagonista enfrentava, é evidente que o sofrimento proporcionava grandes motivos para desanimá-la, e até mesmo desejar a morte, já que, a vida na estância, um lugar isolado, era ruim, cheio de más lembranças, não tinha mais sentido, sua vida era atribulada, sua beleza já estava diluindo devido ao infortúnio. Mas em meio tanto padecimento, tinha algo em seu interior que à impulsionava a não desistir de lutar. Agora, o que dava sentido à vida de Ana Terra, era saber que ia ser mãe, ela sentia “[…] alegria ao pensar que dentro de suas entranhas havia um ser vivo, e que esse ser era seu filho e filho de Pedro, e que esse pequeno ente havia de um dia crescer…” (VERISSIMO, 1997, p.108).
A única felicidade daquela jovem, era saber que a criança que estava sendo gerada em seu ventre, precisava do seu aconchego materno para sobreviver. Com esse pensamento, ela decidiu lutar pela vida. Houve um momento no livro em que Ana foi violentada pelos castelhanos, e quando ela acordou, encontrou tudo destruído, se viu sozinha toda suja, e, o que a faz animar, é saber que o filho poderia estar vivo em algum lugar. Portanto, ela se levanta e vai correndo procurar sua criança.
Ana sentia-se animada, com vontade de viver. Sabia que por pior que fossem as coisas que estavam por vir, não podiam ser tão horríveis como as que já tinha sofrido. Esse pensamento dava-lhe uma grande coragem. E ali deitada no chão a olhar para as estrelas, ela agora se sentia tomada por uma resignação que chegava quase a ser indiferença. Tinha dentro de si uma espécie de vazio: sabia que nunca mais teria vontade de rir nem de chorar. Queria viver, isso queria, e em grande parte por causa de Pedrinho, que afinal de contas não tinha pedido a ninguém para vir ao mundo. Mas queria viver também de raiva, de birra. A sorte andava sempre virada contra ela. Pois Ana agora estava decidida a contrariar o destino. (VERÍSSIMO, 1997, 127).
O vínculo estabelecido com Pedrinho desde o nascimento, até a conivência solitária, forçada pela reação de seu pai e de seus irmãos, fez de Ana uma mulher feroz. O desejo de vê-lo crescer, e o compromisso com o futuro do filho deram vida à heroína Ana Terra que, disposta a contrariar o destino, deixa a condição submissa e parte em busca do novo. Temos, a partir de então, a construção do perfil de uma nova mulher. Ao partir com a caravana de Marciano Bezerra, a protagonista do romance, (re)descobre-se.
A representação da mulher Ana terra, apresenta-nos um panorama histórico-social. No desenrolar da trama acompanhamos o desenvolvimento de uma mulher que sai dos recônditos da fazenda para colaborar na formação da cidade de Santa Fé. Símbolo da mulher gaúcha, Ana Terra ficou reconhecida pelo enfrentamento das dificuldades vividas e pela personalidade férrea, características que lhe permitiram resistir aos embates enfrentados, tanto no aspecto físico, quanto no psicológico. Sem sombra de dúvidas, é uma das mais fortes personagens femininas da Literatura Brasileira, por isso é, constantemente, associada à tenacidade e garra.
REFERÊNCIAS
MAAS, W. P. M. D. O Cânone mínimo: o bildungsroman na história da literatura. São Paulo: UNESP, 2000.
VERÍSSIMO, Erico. O Tempo e o Vento – O Continente I. 35ª ed. Globo: São Paulo, 1997.
VERISSIMO, Erico. Ana Terra. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
Ana Terra não era gaúcha. Ela era Paulista de Sorocaba.
Tens razão, o autor da crônica não se atentou em dar esse esclarecimento. Grato pelo comentário!!!