O caráter descartável e acessório: o homem transformado em etiqueta

Larissa Cardoso Beltrão           –  Larissa Cardoso Beltrão

P10-Coluna LarissaaNa sociedade moderna, não obstante, observamos as mudanças significativas para o processo de trabalho e, principalmente, para a vida das pessoas. Notamos a industrialização e o advento do sistema capitalista como dois fatores determinantes para a alienação dos trabalhadores inseridos nesse meio. Nesse contexto, Carlos Drummond de Andrade se torna, neste tempo moderno, porta-voz da classe oprimida e dedica-se a escrever poemas que a retratam. Em ”Eu etiqueta”, publicado em 1984, verificamos com bastante ênfase o caráter consumista gerado pelo advento do capitalismo, onde já não há a preocupação com a essência do ser, mas sim com aquilo que este possui, uma vez que, para a sociedade capitalista, o valor do ser humano é medido pelos bens adquiridos.
Desde o título do poema, o homem é apresentado como mera propaganda de algum produto, visto que a etiqueta é o símbolo, a marca registrada que permite reconhecer de onde veio a peça comprada. Nos primeiros versos, “em minha calça está grudado um nome/que não é meu de batismo ou de cartório/ um nome… estranho” (DRUMMOND, 1984, p. 85) vemos a aquisição de uma calça na qual há “um nome” que não é do proprietário, mas do fabricante. Em contrapartida, sabemos que todas as pessoas, quando nascem, são nomeadas para que assim sejam reconhecidas pela sociedade. Por isso, o sujeito lírico faz alusão ao novo nome do indivíduo: a marca do produto adquirido. Ou seja, seguindo a lógica consumista, não importa mais o nome dado no batismo ou no cartório, uma vez que as pessoas se tornam visíveis pela mercadoria que compram e usam, ou melhor, se tornam as próprias mercadorias.
Assim, o ser transformado em mercadoria está alheio à realidade, pois desconhece o nome “estranho” e não entende todos aqueles “lembretes” em suas roupas, calçados e acessórios. O homem é inserido no redemoinho capitalista e conduzido ao consumo sem ter consciência de seu condicionamento aos princípios do “ter”. Vejamos:
Meu blusão traz lembrete de bebida
Que jamais pus na boca, nessa vida,
Em minha camiseta, a marca de cigarro
Que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produtos
Que nunca experimentei
Mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
De alguma coisa não provada
Por este provador de longa idade.
(DRUMMOND, 1984, p. 85)

Esses versos explicitam o consumo incontrolado e inconsciente do comprador, pois ele adquire os produtos como visto por meio dos pronomes possessivos “meu” e “minha”, mas não experimentou, provou, ou sequer conheceu todas aquelas marcas. É impulsionado a comprar porque a sociedade, através de propagandas e estereótipos, o atrai transformando-o ideologicamente numa pessoa conhecida e valorizada. A seguir, o sujeito lírico cita diversos objetos:
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
Minha gravata e cinto e escova e pente,
Meu copo, minha xícara,
Minha toalha de banho e sabonete,
Meu isso, meu aquilo.
(DRUMMOND, 1984, p. 85)
No poema, as coisas estão em destaque e o sujeito lírico sugere que elas se sobrepõem ao próprio dono. As palavras “lenço”, “relógio”, “chaveiro”, “gravata”, “cinto”, “escova”, “pente” representam o consumo e também incluem os homens em determinada classe dominante, tendo em vista que apenas os componentes dela podem usufruir de tantos bens materiais. Em suma, as coisas compradas assumem o valor humano e os homens perdem-no, por não serem mais reconhecidos por seus nomes ou características pessoais, mas sim pelos objetos e suas respectivas marcas.
Desde a cabeça ao bico dos sapatos,
São mensagens,
Letras falantes,
Gritos visuais,
Ordens de uso, abuso, reincidências.
Costume, hábito, premência,
Indispensabilidade
E fazem de mim homem-anúncio itinerante,
Escravo da matéria anunciada.
(DRUMMOND, 1984, p. 85)

O sujeito lírico, em certo momento do poema, assume a sua nova condição: homem-anúncio itinerante, escravo da matéria anunciada. Desde o início do poema, questiona-se quem é, descobrindo, logo, não a sua identidade, pois a perdeu, mas a sua função de ser coisa e atrair, cada vez mais, outros consumistas. O homem moderno se coisifica e é escravizado pelos ideais capitalistas que exaltam o poder e o status social conquistados por meio do dinheiro e do poder de compra. São essas as ordens capazes de fixar os hábitos e permitirem a prisão do indivíduo no consumismo, de modo a transformá-lo em propagandas baratas para outras se inserirem nessa “onda do ter”.
O desejo de estar na moda também é consequência desse mundo capitalizado e gera ainda mais a perda de identidade do indivíduo que se limita às escolhas determinadas pelo grupo social dominante que dita as regras e o que deve ser usado ou não. Assim, o homem não apenas perde o direito de escolher o modo de vida e direcioná-lo, como também deixa de existir para a sociedade, tornando-se mercadoria:
Estou, estou na moda.
É duro andar na moda, ainda que a moda
Seja negar minha identidade,
Trocá-la por mil, açambarcando
Todas as marcas registradas,
Todos os logotipos do mercado.
(DRUMMOND, 1984, p. 86)

Nesse momento, o sujeito lírico percebe que “é duro andar na moda”, ou seja, a problemática se torna visível e começam as crises relacionadas à sua existência. Estabelece-se um paradoxo entre o ser anterior ao consumismo, e agora, o ser tragado pelo sistema, cuja identidade tornou-se mercadoria. Vejamos:
Com que inocência demito-me de ser
Eu que antes era e me sabia
Tão diverso de outros, tão mim mesmo,
Ser pensante sentinte e solitário
Com outros seres diversos e conscientes
De sua humana, invencível condição.
(DRUMMOND, 1984, p. 87)

A palavra “inocência” no trecho em destaque demonstra a perda de controle do sujeito sobre si mesmo que passa a se submeter às regras do capitalismo e se “demite” – termo usado quando as relações de trabalho se encerram – na tentativa em vão de romper o vínculo. É evidente a indignação instaurada no sujeito lírico ao perceber que se igualou aos demais, sendo, portanto, apenas mais uma marionete. Antes, se descreve um ser “pensante”, “sentinte” e “solitário”. Ao ser escravizado pelo consumo, se perde, deixa de pensar e é inserido na classe dominante onde há muitas pessoas, porém, está sozinho. Cada pessoa, nesse contexto, ganha caráter de coisa, submissa e descartável, uma vez que só serve enquanto o mercado a considerar valiosa.
Nos versos seguintes, o sujeito lírico confirma o ser reificado: “agora sou anúncio, ora vulgar ora bizarro.” A essência humana dá lugar à mera publicidade, com o intuito de gerar mais consumo e em consequência lucro para uma minoria. Seja local, ou de qualquer lugar do mundo, a exploração e a perda de identidade perpassam várias pessoas e línguas como mencionado “em língua nacional ou em qualquer língua (qualquer, principalmente)”. Destaca-se o pronome indefinido “qualquer” no fim deste verso, pois implica falta de interesse e negligência em relação à pessoa humana e a sua condição.
Consciente disso, o sujeito lírico ainda afirma não receber por seu “serviço” publicitário. Pelo contrário, é ele quem paga por essa condição, estando inserido na engrenagem capitalista e consumista, e, então, ajudando a girá-la, comprando cada vez mais artigos supérfluos e carregando em si a marca desses produtos que o fazem coisa também. O fato de pagar para exibir as etiquetas evidencia uma espécie de tentativa de aceitação para participar de algum grupo com status social. Assim é a lógica moderna, compra-se e é vendido, em busca de reconhecimento pela classe dominante e poderosa.
Nos questionamentos feitos pelo sujeito lírico no fim do poema, entendemos a completa alienação do homem, cujos traços essenciais se perderam. Versos escritos na primeira pessoa do singular indicam a culpa assumida pelo próprio sujeito que acredita ter sido responsável por sua decadência. Não se percebe, porém, como coisa neste mundo capitalista. O homem moderno perdeu a identidade, a capacidade de optar, os desejos pessoais e o seu lugar é a vitrine das lojas, onde se pode ser visto superficialmente e comprado. Percebamos:
Onde terei jogado fora
meu gosto e capacidade de escolher,
Minhas idiossincrasias tão pessoais,
Tão minhas que no rosto se espelhavam
E cada gesto, cada olhar
Cada vinco da roupa
Sou gravado de forma universal
Saio da estamparia, não de casa,
Da vitrine me tiram, recolocam.
(DRUMMOND, 1984, p. 87)

Os versos finais retratam o processo concreto de coisificação do homem, antes pensante e possuidor de sentimentos agora desfeito e transformado em “objeto pulsante, mas objeto”. O coração ainda pulsa, muito embora não haja vida real, apenas alguém colocado à venda e aprisionado no consumismo. Há uma continuação desse processo, pois o próprio sujeito lírico “se oferece como signo de outros objetos estáticos, tarifados”.
Resta a exibição do “não eu”, da coisa produzida, “do artigo industrial”. Por fim, um último pedido, ainda com orgulho, “por me ostentar assim, tão orgulhoso de ser não eu, mas artigo industrial, peço que meu nome retifiquem. Já não me convém o título de homem. Meu novo nome é Coisa. Eu sou a Coisa, coisamente” (DRUMMOND, 1945, p. 99). Dessa maneira, o homem reificado se estabelece, quando o seu nome também é modificado. Torna-se Coisa, com letra maiúscula, e objeto manuseado pelos consumistas. Em “Eu etiqueta” notamos, pois, um retrato claro da mudança e das perdas sofridas pelas pessoas acarretadas pelo controle do sistema capitalista.
REFERÊNCIAS
GULLAR, Ferreira. O açúcar. In: ______. Dentro da noite veloz. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. p. 44-5.
LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe: estudos de dialética marxista. Tradução de Telma Costa. 2. ed. Rio de Janeiro: Elfos, 1989.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/manifestocomunista.pdf. Acesso em: Agosto de 2013.
SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Ática, 2004.

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