A CONFISSÃO COMO ESTRATÉGIA DE RESTRIÇÃO NA POÉTICA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
A proposta de realizar um trabalho que tenha como objetivo evidenciar a influência da formação do poeta em sua produção, coloca-nos diante da necessidade de, vez ou outra, visitar sua fortuna crítica, não para justificar o percurso desta pesquisa que, como o título sugere, não é de cunho biográfico, mas para salientar que somente a partir de sua formação estética surge a possibilidade de escrita. Na medida em que apresentamos a obra do poeta, recorremos a tais trabalhos para demonstrar que Carlos Drummond de Andrade (CDA) tem formação clássica, romântica e modernista, o que induz a entender como o autor, não a pessoa, opera com essas possibilidades.
Não tivemos, ao longo deste estudo, a pretensão de afirmar que a poesia de Drummond, bem como a de qualquer poeta, somente seja possível a partir dos acontecimentos que compõem sua biografia. Entretanto não podemos negar a participação desta na formação do poeta, pois esta condição lhe permite tratar com maior rigor estético e, ao mesmo tempo, conferir forma à sua obra. Ante tais considerações, julgamos ser importante que, antes de abordarmos as características de sua produção, visitemos sua fortuna crítica, com o intuito de instaurar-nos no terreno da poética drummondiana e situá-la no espaço e no tempo.
Considerado um dos maiores poetas brasileiros, não é de se estranhar o enorme acervo crítico acerca da produção de CDA. São inúmeros ensaios, artigos, dissertações e teses que se ocupam da obra publicada do escritor mineiro. Em seu ensaio denominado Poesia e resistência, Alfredo Bosi (1977, p. 141) atribui ao poeta a condição de doador de sentido, afirmação que talvez justifique o tamanho desse acervo que aumenta a cada dia. Sua poesia nasceu no ápice do Modernismo. Nesse contexto, a partir da nova ordem mundial, como sugere Antônio Secchin (1996, p. 18), na medida em que o discurso poético desvinculou-se do discurso normativo, a poesia passou a ser vista como um espaço de insubordinação e, portanto, já não estaria comprometida com uma verdade
unívoca, transformando-se em um mecanismo capaz de trazer à tona uma pluralidade de verdades.
Tido como um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos, a quantidade de trabalhos monográficos, dissertações e teses que se ocupam da obra de CDA, como já dissemos, não causa nenhum estranhamento. A crítica literária especializada em sua criação, bem como nos estímulos sofridos por ele, está longe de ser novidade. Em “Inquietudes na poesia de Drummond”, ensaio publicado na obra Vários escritos (1995, p. 112), Antonio Candido apresenta o bloco central da poesia de Drummond, regido por inquietudes resultantes da tensão estabelecida diante de sua capacidade de ora situar-se no campo do coletivo, característica perceptível em sua preocupação com os problemas sociais; ora aparecer fechado, imerso em sua individualidade. Ao afirmar que a poética de Drummond diferencia-se das demais pela falta de naturalidade, Candido nos faz pensar no tratado Do Sublime de Longino (1996), segundo o qual o prazer do devaneio, sem técnica, apresenta-se frágil. Ao reconhecer a poesia drummondiana como fruto de um trabalho metódico, compreendemos seu processo criativo como resultado da combinação entre dom e trabalho técnico.
Do prisma das inquietudes na poesia drummondiana, não obstante, Candido (1995, p. 115) destaca em seu sujeito lírico a presença de um “eu todo retorcido” – retirada de um canônico verso do poeta –, perdido entre os anseios do mundo que lhe foi contemporâneo e o passado revisitado por sua memória viva. Em uma das obras mais visitadas pelos estudantes de Literatura Brasileira, História concisa da literatura brasileira, sobre CDA, Alfredo Bosi (1994, p. 441) comenta que se trata do primeiro grande poeta a firmar-se depois das estreias, na época, consideradas modernistas. Para ele, a força constitutiva da obra de Drummond está no tecido capaz de unir os polos de sua criação, coisa-razão. O poeta tecnicista e lúcido caminha de mãos dadas com o poeta prosador, que não descarta o arsenal concreto das coisas. O rigor da fala madura, o tom irônico, as construções antirretóricas de um sujeito lírico, configurado por Sant’Anna (1992, p. 30) como anti-herói, conferiram à poesia drummondiana a antilira, estratégia encontrada por ele para cantar os homens de seu tempo. É por meio dessa estratégia que o poeta desvela os absurdos aos quais seu vasto mundo está sendo submetido no contexto do advento da modernidade.
A fim de que compreendamos a importância do processo contingencial para o ato criativo na poética drummondiana, recorremos a Longino (1996), cujas afirmações,
no que diz respeito à arte da escrita, indicam-nos duas possibilidades: uma é a da criação pelo entusiasmo, comparada por ele à paixão, sendo, portanto, um ato violento e entusiasta, como se a materialização do texto acontecesse por uma espécie de insight, no sublime. Esta seria fruto dos dons compreendidos como naturais; já a outra seria a escrita cerebral, fruto de um trabalho técnico.
Logo no início de seu tratado sobre a estética do sublime, Longino (1996) expõe essa problemática, acerca do estímulo dos dons naturais. Ao reconhecermos a existência de tal possibilidade, somos levados a inferir que a criação é perpassada pela natureza, o que é considerado dom inato, mas que ao ser trabalhada pelo rigor da técnica, tende a chegar com maior eficácia ao sublime. Nessa linha de raciocínio, a grandeza dá-se a partir do encontro entre natureza e técnica e a educação seria, pois, um parâmetro regulador. Assim, a natureza autônoma, representada pelo dom, ao passar pelo crivo do trabalho técnico está sendo educada, daí o surgimento do método, processo este necessário para que se alcance o sublime.
Ao defender a ideia de que, embora violenta, a educação permite ao artista não ficar entregue ao acaso, Longino (1996, p. 45) reafirma sua teoria de que, ao definir os limites, o método colabora com a educação da alma (da mente, do entendimento). Para ele, é exatamente este processo que conduz o poeta à grandeza do sublime, haja vista que da natureza inata nasceria o assunto e somente a partir da intervenção técnica o escritor poderia escolher o método do qual se utilizará para determinada finalidade:
A grandeza, abandonada a si mesma, sem ciência, privada de apoio e lastro, corre os piores perigos, entregando-se ao único impulso e a uma ignorante audácia; pois, se frequentemente precisa de aguilhão, precisa também de freio (LONGINO, 1996, p. 45).
Consoante observamos por meio da citação anterior, Longino reconhece o dom como algo inato, porém não descarta a importância do trabalho técnico. Partindo deste pressuposto, como já mencionamos nesta introdução, as noções de restrição, por nós adotadas ao longo deste trabalho, são fundamentadas em Jon Elster (2009). Para que possamos compreender seus efeitos na produção poética de CDA, iniciamos um breve relato sobre a maximização do valor estético com base na relação estabelecida entre restrições, valor e criatividade. De acordo com Elster (2009, p. 254), o processo de criação artística, por si só, é direcionado pelo desejo de maximização estética a começar pelasrestrições, fenômeno este que pode ser entendido a partir da ideia de que ao criar uma obra de arte o artista tenta produzir seu melhor e, desse modo, não é permitido ao leitor tirar ou adicionar nada sem lhe causar prejuízo. Entendemos, no entanto, que melhor não significa bom, nem certo nem justo, mas aquilo intentado pelo artista.
No caso de CDA de maneira bem associada a sua personalidade, além de aludir ao que Arrigucci Jr denominou “lírica reflexiva” drummondiana. Grande parte dos poemas visitados por nós comprovou a tese apresentada acima, sua obra poética pode ser compreendida como um espaço de confissão, uma vez que sua poesia, geralmente, nasce de sua incapacidade de comunicar-se oralmente. Devemos somar a isso a discrição irônica também fruto de sua personalidade que conferiram à sua poética a condição de emblemática, haja vista que seus poemas são além deles, o reflexo de outra dimensão escondida. Sem temática pré-estabelecida, ou padrões definidos, sua poesia sai de Itabira do Mato Dentro, percorre as cidadezinhas mineiras preservando suas peculiaridades; se alarga durante sua passagem por Belo Horizonte e, por última, alcança seu patamar mais elevado na cidade do Rio de Janeiro.
O caminho feito por Drummond é também percorrido por sua poesia o que, mais uma vez, vem ao encontro de nossa proposta. Longe de nós a pretensão de afirmar que estamos diante de um poeta biográfico, pelo contrário, o que nos propomos ao longo desta pesquisa foi evidenciar a importância da formação do poeta para o seu processo criativo, com vistas a comprovar que as experiências vivenciadas por ele foram cruciais para o nascimento do ser poético, bem como para sua afirmação. Assim esperamos ter alcançado o objetivo de evidenciar que os movimentos da poesia drummondiana são resultado da movimentação do próprio poeta, enquanto sujeito criador.
*Mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás (UFG); professora de Literatura Brasileira na Universidade Estadual de Goiás (UEG) campus Campos Belos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.
BOSI, Alfredo. Cultura brasileira e Culturas brasileiras. In ______. Dialética da colonização. 3 ed. São Paulo: Companhia das letras, 1995. p. 308-345.
CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In: ______. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970. p. 93-122.
ELSTER, Jon. Ulisses liberto: estudos sobre racionalidade, pré-compromisso e restrições. Tradução de Cláudia Sant’Ana Martins. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
LONGINO. Do sublime. Tradução de Filomena Hirata. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
SECCHIN, Antônio Carlos. Poesia e desordem. In: ______. Poesia e desordem: escritos sobre poesia e alguma prosa. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p. 17-20