A REPRESENTAÇÃO DO HOMEM CONTEMPORÂNEO NAS CRÔNICAS POÉTICAS DE FABRÍCIO CARPINEJAR: SEU ITINERÁRIO DE CANALHA À BORRALHEIRO
Larissa Cardoso Beltrão – laricinhabeltrao@hotmail.com – BELTRÃO, Larissa Cardoso¹ – SOUZA, Carlos Henrique de Souza²
Gaúcho, filho de Maria Capri e Carlos Nejar, poeta, escritor, jornalista e professor
universitário Fabrício Carpi Nejar, que já em sua primeira obra Solas do sol, passou a adotar a junção dos sobrenomes – Carpinejar – , é um ouvinte declarado da chuva e um leitor apaixonado do sol. Natural de Caxias do Sul, tem sua obra marcada pelo estilo conficcional, que é assim denominado pelo próprio Fabrício. Há, em suas obras, um mergulho no subjetivo sendo que, em grande parte de suas crônicas, é possível que o leitor capte um momento de
epifania.Constatamos estes aspectos na obra Canalha de Carpinejar, no momento em que a sensibilidade aguçada do poeta surpreende o leitor, ainda que desatento, como podemos flagrar nas linhas poéticas de muitas de suas crônicas.
Aspecto melhor evidenciado nas linhas poéticas da crônica As tampinhas do leite. Observemos:
Eu me vejo verdadeiramente acordado ao observar a dobra me aguardando. Sério. Espio antes de chegar. Fiquei dependente da tampinha. Amo a tampinha. É agradável dividir o espaço com ela. Não me dá trabalho. Sugere sede, fome, dependência. Por ela, sei que minha mulher está em casa, está comigo. É vizinha da linha dos lábios dela. É seu vício, sua senha. Cartolinha colorida de criança. É sua maneira de me animar, de dizer que vive comigo. […] (CARPINEJAR, 2013, p. 34-35).
O autor apresenta uma situação, que para um indivíduo comum, seria uma cena relativamente rotineira. Esta produção poética dentro da crônica é composta por certa ambiguidade, podendo oscilar entre um gênero e outro, em alguns momentos carregados pelo valor poético, em outros pela porosidade da prosa, faz com que o leitor confunda essa tipificação prosaica, em alguns casos não sabendo distingui-la exatamente, pois a crônica é um texto com esta característica, e às vezes em função de sua composição, pode assumir a forma poética.
A narrativa produzida por Carpinejar é tomada também por um lirismo desmedido, alcançada pela leveza dos gestos, através dos quais o leitor é convidado a um mergulho na subjetividade:
Minha mulher não põe bilhetes na geladeira, não borra o espelho de batom, não grava recados na secretária eletrônica, não força prova de paixão, não forja testemunhos. É suave, sugestiva, pede compreensão e o mistério. Pede que eu a entenda antes que diga algo. Pede que aceite o espaço de cada um, os hábitos de cada um, e preserva as individualidades com cuidado. O pedacinho da caixa de manhã é como a súplica de bom-dia. […] (CARPINEJAR, 2013, p. 35).
É interessante percebermos em seu texto a oscilação entre poesia e prosa, o que na modernidade, é concebido como prosa poética. Mesmo nos textos de escritos em prosa, é possível encontrarmos elementos poéticos, o que configura uma prosa poética, e, por conseguinte, uma prosa poética lírica. Sob este viés da hibridização dos gêneros, os textos carpijeanos são produzidos diante de outra perspectiva, e destroem a concepção da rigidez dos gêneros dentro do campo literário de que estes eram formas aparentemente prontas e acabadas.
Como nosso objeto de pesquisa, neste texto, é representação da figura masculina dentro do corpus social, partiremos das obras Carpinejar Canalha e Carpinejar Borralheiro. Os adjetivos que caracterizam o escritor configuram dois aspectos do lugar do homem no contemporâneo, duas figuras aparentemente distinta, mas que refletem as distinções sociais feitas em relação ao sexo masculino, e permeadas por anseios coletivos visam refletir sobre o lugar do homem, nas esferas sociais.
Nesse sentido, é necessário que pensemos no papel do homem na sociedade contemporânea, este que por sua vez reflete uma dominação simbólica, mas a priori, este conceito existe a partir do papel exercido por tal na sociedade, que está pautado em atributos destinados a cada um dos gêneros, e então tem-se uma complexa discussão entre os papéis desempenhados, tanto pelos homens quanto por mulheres.
Nesse contexto, Pierre Bourdieu (2002) define estes aspectos que permeiam a discussão acerca dos gêneros masculino e feminino, como uma “divisão dos estatutos sociais atribuídos ao homem ou mulher” (BOURDIEU, 2002, p. 23). Assim as atribuições legadas a cada um dos gêneros são constituídas a partir de conceitos preexistentes na sociedade, questões que envolvem os sexos são base para amplos debates, pois fomentam discussões, principalmente no papel desempenhado por cada um.
É nítido que o homem tem seu lugar definido na sociedade moderna, suas atividades exercidas são antes traçadas pelos fatores que rodeiam a discussão dos sexos, é partir de então que o homem constrói sua dominação, e portanto, as concepções em relação ao domínio masculino, são conceitos criados anteriormente e assim esta percepção “legítima uma relação de dominação inscrevendo-a em uma natureza biológica que é, por sua vez, ela própria uma construção social naturalizada” (BOURDIEU, 2002, p. 32), constitui-se então algo normal, formado com naturalidade ao decorrer dos tempos.
Nessa perspectiva constituiremos a partir de agora um itinerário, contrapondo a formação e constituição do homem contemporâneo dentro do contexto social. No qual, Carpinejar constrói a representação do indivíduo masculino contemporâneo, com seus defeitos, hábitos, qualidades entre outros aspectos, enfim a normalidade gerada a partir da sua vivência habitual, porém sua criação literária é inteiramente relacionada à vida diária.
Carpinejar, como escritor contemporâneo reflete em seus textos uma dualidade, que está evidente em seus livros Borralheiro e Canalha, nos quais procura desvelar a figura masculina em dois aspectos: no primeiro, o Carpinejar Borralheiro, o autor traz um personagem que gosta das tarefas domésticas, um homem do lar, onde converte o mais íntimo do cotidiano em teorias cheias de humor:
O que pretendemos é ser do lar. Não conhecemos nenhuma dona de casa que foi processada; é mais seguro. Já temos praticar em lavar carro; aprontar o quarto é moleza. O que nos atrai neste milênio é preparar o jantar consultando um livro de receitas. Testar trituradores de camelôs. Não nos importamos em receber mesada, podem deixar em cima da mesinha antes de sair. Não esquecem o dinheiro do gás. Produziremos três pratos quando vocês chegarem. Prometemos um doce toda semana, um pudim ou ambrosia, como queiram. Mas, por favor, só avisem quando vierem com as amigas para jantar, que tudo seja planejado, horrível dar vexame ás visitas.” (CARPINEJAR, 2011, p.15)
Carpinejar constrói uma nova característica para o homem, a figura masculina passa a ser considerada por ele, do lar, embarcando em uma viagem íntima pelos recônditos da alma do homem que, apesar de moderno, sente o desejo de resgatar alguns valores não comuns aos costumes da sociedade atual. Além do valor poético presente na crônica, o autor retrata o comportamento do homem contemporâneo. Papel este revestido por novas características. Temos então, um retrato comum da sociedade que tal figura está inserida, em muitos casos, fragmentado nas relações.
Este novo posicionamento do sexo masculino reflete o homem moderno em situações de vivência diversificadas, agora não se encontra mais preocupado em seguir as atividades destinadas ao seu sexo, mas visa outro comportamento. Contudo, este homem logo é revestido pelo por sua condição de canalha, com a atribuição do humor, este agora é deliberadamente ao contrário do Borralheiro, e tem novos amores, e novas formas de vivências.
Em Carpinejar Canalha , não obstante, verificamos textos perpassados pelo humor, comum ao homem contemporâneo. Nessa obra, o escritor cria um personagem com todas as imperfeições do cotidiano, proporcionando que seu público leitor contemple, assim, o surgimento de um novo homem, o canalha.
Verificamos, portanto, na oscilação entre Carpinejar Borralheiro e Carpinejar Canalha que o leitor é levado a imaginar a construção da figura masculina, ora em um momento, ora em outro. Primeiro um borralheiro já insatisfeito com a atmosfera permissiva e, em seguida, um canalha vislumbrado com a modernidade.
Neste viés, o público presencia inúmeros fatos de seu próprio cotidiano no literato, pois são características e comportamentos dos indivíduos que foram modificados em virtude do caos social em que estão inseridos, e então, as obras são necessariamente o retrato literário do social remente aos aspectos do momento vivente.
Portanto, Carpinejar recria sua cadeia de relações em um universo ímpar. O escritor transcende as barreiras, consideradas convencionais, e faz de suas obras um espelho capaz de refletir o leitor com seus dilemas e embates mais íntimos, mostrando, que, a literatura é o espaço, ainda que simbólico, de resgate e superação, e que, por conseguinte concretiza a relação existente entre literatura e sociedade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. 5 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
CARPINEJAR, Fabrício. Borralheiro: minha viagem pela casa. Rio de Janeiro: Bertrand, 2011.
______. Canalha: retrato poético e divertido do homem contemporâneo. Rio de Janeiro: Bertrand, 2013.
MOISÉS, Massaud. A criação literátia: prosa. São Paulo: Cultrix, 1990.