Saúde: Mortes revelam o quanto a depressão é subestimada

O Globo

O ator do riso fácil, aquela figura frenética, cheia de trejeitos hilários, adorado por gerações, que encarnou tipos antológicos em “Uma babá quase perfeita” e “Bom dia, Vietnã”, esse personagem da vida real foi fatalmente fisgado pela depressão.

Ao contrário da tristeza, há alterações químicas cerebrais no caso da depressão. Mesmo assim, o diagnóstico da doença ainda é clínico, ou seja, é o médico que avalia o quadro a partir dos sintomas
Ao contrário da tristeza, há alterações químicas cerebrais no caso da depressão. Mesmo assim, o diagnóstico da doença ainda é clínico, ou seja, é o médico que avalia o quadro a partir dos sintomas

A notícia da morte do ator Robin Williams, que cometeu suicídio na última terça-feira, aos 63 anos, deixou o mundo, no mínimo, confuso: “mas, afinal, como pôde? Por quê?” Embora esteja presente no jargão popular, a depressão é ainda pouco compreendida pela maioria, dizem especialistas. Outro humorista, o brasileiro Fausto Fanti, do grupo Hermes & Renato, foi igualmente vítima recente desta que é uma doença — não uma simples tristeza — e que pode afetar qualquer um.
A informação sobre a depressão de Williams foi divulgada apenas após a sua morte. Um de seus amigos, o comediante Bob Zmuda, disse que o ator escondia a doença através da comédia. Mas ela era grave e completava algumas décadas, segundo familiares. Além de situações da vida, ou seja, os fatores ambientais, a herança genética também influencia a sua ocorrência. Por isso, estima-se que uma pessoa que sofreu algum episódio de depressão tem 50% de chance de ter o segundo; se foram dois, a propensão para um terceiro sobe para 70%; e se chegou a três, há 90% de probabilidade de ocorrer uma quarta crise.
— É possível se curar da depressão. Ter uma crise e nunca voltar a ter outra. Mas estas pessoas que abriram esta porta precisarão ficar vigilantes para o resto da vida — comentou o psiquiatra Flávio Alheira, do Serviço de Psiquiatria e Psicologia Médica do hospital da UFRJ e coordenador da residência médica da psiquiatria na universidade. — O tratamento pode evitar que uma depressão leve se torne severa. É uma doença que pode ser grave e levar à morte, por isso é preciso ter muita atenção a ela.
MAIORIA NÃO RECEBE TRATAMENTO
Hoje, no entanto, a maioria dos que sofrem depressão não recebe tratamento. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), são seis a cada dez na América Latina que não procuram ou não conseguem qualquer suporte. Mas e no caso de Williams, a quem não faltava consciência ou recursos para tratar-se?
— Não sei a história clínica do ator, mas mesmo uma pessoa que tenha infraestrutura para ter o melhor tratamento às vezes tem dificuldade de aderir a ele, nega a doença, se recusa a ser internado quando há necessidade, não tem apoio da família — exemplifica Alheira. — E ainda há um enorme tabu com a depressão. Daí surgem aqueles frases do tipo: “isso é preguiça”, “falta força de vontade”.
Para o professor de psiquiatria da UFRJ e pesquisador do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino, Paulo Mattos, este estigma vem de uma certa banalização do termo.
— A depressão é uma doença, não é uma simples tristeza. É normal ficar triste quando alguém querido morre, quando um relacionamento termina. A tristeza faz parte — explica. — Mas hoje é comum dizer que está deprimido e tomar medicamento sem necessidade.
Ao contrário da tristeza, há alterações químicas cerebrais no caso da depressão. Mesmo assim, o diagnóstico da doença ainda é clínico, ou seja, é o médico que avalia o quadro a partir dos sintomas. Dois deles são os principais: a tristeza, de fato, precisa estar presente; e a ausência de prazer para qualquer atividade, mesmo aquelas que antes deixavam a pessoa feliz. Outros sinais, como insônia, diminuição do desejo sexual e compulsão alimentar estão entre eles; e, além disso, o histórico familiar da pessoa.
— Por mais que se busque, pesquisadores ainda não conseguiram identificar marcadores biológicos que estejam associados com a depressão. Aliás, no ramo da psiquiatria, a única doença que começamos a conseguir traçar estes biomarcadores é o mal de Alzheimer. Por isso é difícil prever quem tem maior risco ou ter algum exame para ele — comenta Mattos.
O luto, por exemplo, pode ter sintomas semelhantes ao de uma depressão. A diferença, explica Alheira, é a duração: entre três a seis meses, a pessoa começa a se recuperar. No caso da doença, eles são mais duradouros. E, às vezes, sem motivo aparente. Também não escolhe idade, nem classe social. Mas há, sim, alguns padrões: pessoas solitárias, sejam solteiros ou viúvos, têm maiores chances de desenvolver o problema; mulheres também são mais propensas. Em média, 20% delas e 13% deles terão depressão em algum momento da vida.
Além disso, alcoolismo e abuso de drogas aumentam esse risco de depressão, assim como o de suicídio. Cerca de dois terços de todas as pessoas que cometem suicídio têm depressão ou alcoolismo. E um em cada três que sofrem de depressão também têm problemas com abusos dessas substâncias. Portar doenças neurológicas, como as demências e o mal de Parkinson, é outro fator de risco.
O ator se internou diversas vezes em clínicas de reabilitação nos últimos 20 anos para lutar contra o alcoolismo e o abuso de drogas, como a cocaína. A última delas, em julho. Ontem, a viúva de Williams, Susan Schneider, chegou a afirmar que ele tinha recebido recentemente a notícia de que estava na fase inicial do Parkinson.

CRIATIVOS SERIAM
MAIS PROPENSOS
Vários pesquisadores acreditam que os mais criativos são, também, os mais afetados pelo distúrbio. Simon Kyaga, do Instituto Karolinska, mostrou em 2012 que aqueles em profissões criativas tinham mais chances de, além de depressão, sofrer de outros transtornos psiquiátricos, como ansiedade e bipolaridade. Portanto, atores, escritores, cientistas, artistas estariam neste ‘“seleto” e ‘“romântico” grupo, relação sobre a qual não se tem consenso entre especialistas.
— Não existe esta comprovação. A única relação entre atividade profissional e distúrbio psiquiátrico que se tem descrita é o caso de bailarinas e modelos com o transtorno alimentar — garante Alheira.
De maneira geral, segundo a OMS há 350 milhões de casos no mundo. A média é de 5% na população da América Latina, mas a incidência pode superar os 10% em algumas regiões. E esta, de acordo com o órgão, está entre as principais causas de incapacidade e perda de qualidade de vida na população. Uma pesquisa da MayoClinic concluiu que entre 2% a 9% dos deprimidos chegam ao suicídio, embora outras estatísticas estabeleçam níveis ainda maiores.
Uma vez livre da crise depressiva, a pessoa precisa ficar atenta aos seus sinais no futuro e evitar possíveis gatilhos, por exemplo o álcool. A atividade física é comprovadamente benéfica contra o mal, assim como ter boas noites de sono, controlar o estresse, a alimentação, manter vida social e buscar os tais momentos felizes.
O tipo de tratamento vai depender da gravidade da depressão, e pode incluir a associação de psicoterapia e medicamentos. Menos conhecida é a eletroconvulsoterapia, mas segundo Alheira por preconceito (“Acham que é igual a choque elétrico”) e preço (R$ 1000 por sessão, de um mínimo de oito sessões). Grande parte dos remédios surgiu nos anos 1950; novos vieram depois, mas, garante Alheira, a eficácia de todos gira em torno de 60%. Há poucos avanços nessa área. Para o futuro, espera-se a chegada da estimulação magnética, hoje em estudo, já que seus resultados ainda não foram os mais promissores.

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