Literatura & Direitos Sociais – DA BOCA DO POVO PARA OS VERSOS DO POETA: MARCAS DA ORALIDADE NA POESIA DE JOAÕ BELTRÃO FILHO

Larissa Cardoso Beltrão – laricinhabeltrao@hotmail.com

Partindo do pressuposto de que a literatura pode ser, também, compreendida como um meio de expressão da cultura de cada povo, do resgate da tradição oral e o

p7-Seminário e Beltrão (35)sustentáculo da memória dos que a possuem como legado social acreditamos, pois que para a valorização destes elementos, principalmente em uma sociedade plural como a brasileira que está em constante processo de transformação, a produção literária surge como um instrumento essencial para a manutenção da essência cultural, ou melhor, das essências, uma vez que, como nos lembra Alfredo Bosi (1992), cultura, no Brasil, deve estar sempre no plural, culturas.
Nesse contexto, a representação cultural de um povo só pode ser concebida a partir da linguagem, que é uma das mais refinadas formas de expressão utilizadas pelo ser humano, e por ter esta importância está fortemente atrelada aos estudos linguísticos, nos quais geralmente são ressaltados as faltas e as sobrepujações da língua e o seu efeito na linguagem. Alguns ainda buscam uma interpretação acerca da formação da linguagem em determinados povos e culturas.
Assim, a tradição oral esta fundamentalmente ligada à perspectiva lançada no excerto, pois define as relações fundamentais entre os seres humanos. Portanto, a tradição oral fundamenta a existência das pessoas e suas relações. Desse modo, segundo as concepções de Garcia (2009), a tradição oral é a forma de linguagem considerada mais pura produzida pela sociedade humana.
Sabemos que, ainda hoje, as culturas popular e erudita estão presentes no ideário social e fecundam as relações entre as pessoas. Há também de lembrar que mesmo coexistindo estas “disputas” elas certamente já estão mais acentuadas. Este fato se deve, a nosso ver, muito em função da valorização da diversidade cultural.
Dentro desta perspectiva, a literatura tem um papel fundamental na construção da dissociação entre ambas as possibilidades culturais. Ela ajuda a engendrar uma síntese profunda entre as várias manifestações existentes em ambos os segmentos. Por isso investe no que é real e concreto, pois envolve todas as transformações pertinentes à vida.
Nisso também reside o caráter mágico e sintético da literatura e sua relação com a tradição oral. Esta forma singular de manifestar valores culturais e sociais, além de apontar certas características de determinado povo, abre várias possibilidades de relacionar a vida e a literatura.
Em meio a esta perspectiva ao longo desse trabalho procuraremos ressaltar a importância da literatura na construção de um novo olhar sobre a cultura camposbelense. Propondo aos leitores de poesia uma posição mais crítica e valorativa acerca dos poetas e literatos da região de modo geral lançaremos nossos olhares para a relação entre literatura e oralidade na produção poética local.
João Beltrão Filho, encontra na memória de seu povo e de sua terra sua maior fonte de inspiração. Afirmação que pode ser comprava em muitos de sues poemas. Nos versos de “Campos Belos (in memoriam)” ele evidencia diversos aspectos de sua cultura, de seu povo, de sua gente:
Minha cidade é tão pequenina,
Que nem mesmo cabe num cartão postal…
É um lindo pedacinho de terra,
Onde não tem guerras, etcétera e tal…
Ela tem uma igrejinha na praça,
Onde o vigário passa, com a procissão…
Um chafariz, um pé de manguba,
E a velha Kampuba, do meu coração… (FILHO, 1989, p. 33)
Neste trecho João Beltrão Filho destaca a simplicidade de sua terra ele descreve a igreja da praça da matriz, que passou por muitas mudanças, e que neste momento está passando por outra reforma. Aos mais festeiros, como não se lembrar da boate Kampuba, local de lazer da boemia local, que já há alguns anos não existe mais na cidade. Esta representação que veremos na imagem abaixo.
A cidade outrora pequenina, hoje, um pouco mais de duas décadas depois da publicação da obra, difere-se cidade cantada pelo poeta. Para estabelecermos bem tais diferenças, a imagem apresentada abaixo, comprova o espaço existente entre a memória do poeta e o progresso da cidade. Prossigamos, pois, o poema:
O bar de “Tico” na primeira esquina,
Onde as meninas vão se distrair…
Logo em frente, o bar do “Mestre-Zé”,
Onde o Gelson toca, pra nos divertir…
O velho Grupo Professora Ricarda,
Onde aprendemos o “bê-a-bá”…
Onde, com todas as dificuldades,
Dona Antonia nos ensinou a e ler a contar (FILHO, 1989, p. 33).
Nestas duas estrofes o poeta resgata a lembrança de pessoas celebres da cidade e de locais muito importantes para o convívio social. Sem esquecer da educação, lembra o Grupo escolar Professora Ricarda, que hoje é uma instituição muito grande que é dona de quase metade de um quarteirão.
Nos versos lembra-se da professora Antusa, que posteriormente seria homenageada como nome de uma das maiores escolas do município: O Colégio Estadual Polivalente Professora Antusa. E lembra é claro do clube, onde no lugar hoje existe um Centro poliesportivo. Vejamos:
Dona Matos e Dona Antuza,
Hoje são musas da minha canção…
Dom Alano e o Padre Samuel,
Trazemos todos no coração
O velho “clube”, o pé de tamarindo,
O poço de buriti, lajinha e poção…
Onde passávamos o dia inteiro,
E só voltávamos pra casa para fazer a lição (FILHO, 1989, p. 33)
Além dos destaques feitos acima, a questão da memória é evidente neste poema, pois fala das pessoas que transformaram a cidade e de lugares inesquecíveis. O poeta lembra ainda de sua infância, quando se refere, aos córregos da cidade. E mais, fala dos buritizais, que hoje, infelizmente não são mais vistos na paisagem da cidade.
Vejamos as estrofes finais:
Lá mais em cima a máquina de Monteiro,
E o cineminha do “Seu” Joaquim…
O cafezinho do “Seu” Jesuíno,
E o buteco de “Seu Nozim…

Êta que lugarzinho bonito,
O paraíso bendito, que Deus abençoou…
Esta paisagem ainda hoje existe
No peito sofrido desse cantador…
Que te gosta, meu velho Campos Belos,
Com o mais sincero amor… (FILHO, 1989, p. 34).
Carregado de amor por sua terra natal, o ator trafega no itinerário histórico de seu tempo e resgata muitos atores e lugares de sua juventude. Quanto à oralidade percebe-se logo nos versos iniciais das estrofes acima, pode-se perceber o uso do pronome possessivo “seu” no lugar de pronome de tratamento “senhor”, uma característica marcante da região. A presença do termo “Êta” é utilizado para enfatizar a beleza do lugar abençoado por Deus. Tanto a expressão como a referência a Deus são marcas da tradição oral do lugar. E essas são formas de representar o povo, pois o eu-lírico é um “ser campo-belense”. A afetividade do eu-lírico fica demonstrada nos diminutivos “cineminha, cafezinho, lugarzinho”, sendo seus típicos da fala embebecida de carinho. Assim ele nos elucida com a sensibilidade e ousadia de quem não deixa de se reconhecer como fruto desse chão que também brota poesia.
Sua poesia é marcada pela subjetividade e pelos aspectos concretos que a vida e as suas mais diversas formas de manifestação proporcionam, conforme poderemos comprovar no tópico a seguir, no qual trataremos mais especificamente de sua produção poética.
Na produção poética de Joãozinho Beltrão, como é conhecido, encontramos algumas marcas interessantes, em especial podemos apontar o amor por sua terra natal, pelo seu chão e também o grande apego com as tradições religiosas. Há ainda um contínuo resgate da memória do povo, dos costumes e festividades. Em meio a esta miscelânea de considerações, amiúde são explícitos os traços da oralidade regional.
Devemos ressaltar ainda que a poesia desse autor se aproxima, guardada as devidas proporções, a de Cora Coralina, outra goiana que admirava sua terra e fez de sua poesia fonte de crítica, admiração e valorização da cidade natal e do estado de Goiás. Ademais, estas lembranças somente existem em função da força da existência cotidiana desse povo.
Portanto, observar as marcas da oralidade apresenta-se como algo fundamental, visto que demonstram a dimensão da vida e das suas diversas faces. Este aspecto do viver está ligado a todos os âmbitos e metamorfoses que o ser humano se encontra. É, pois, na estrada, que João Beltrão dá contornos importantes a sua vida e também a seu povo além de tornar visível a relevância da oralidade na construção de sua identidade.
Nos versos do poema “Orgulhosamente goiano”, não obstante flagramos o amor por sua cidade natal, bem como as marcas da tradição oral:

ORGULHOSAMENTE GOIANO
Eu me orgulho de ter o pé rachado,
De tanto usar alpercatas de couro cru
Eu fui criado debaixo de um céu azul,
Das veredas dos sertões de meu GOIÁS…
Eu me orgulho de ser filho de vaqueiro,
Daqueles que tangem uma boiada
E abrem o peito palma a palmo das estradas,
Das veredas dos sertões do meu GOIÁS…
Eu tenho orgulho de ser mais cantador
Que exalta a beleza do meu torrão,
A poesia brota do meu coração
Como um dom divino de encantar…
Pois meu GOIÁS tem terra boa
Tem manga-rosa e cajá,
Passarinhos que gorjeiam
Asa-branca e sabiá…
Tenho uma rede de “imbira”
E uma velha roda de fiar,
Tem Rosinha na janela
Três vaquinhas no “currá”…
Um cavalo “campulino”,
[…]
Dobro os joelhos ao chão,
Levanto as mãos para o céu
Peço benção ao Criador,
Com minh’alma “suspirano”
Por me fazer orgulhoso,
De nasce no chão goiano (FILHO, 1989, p. 41).
Neste poema as marcas de oralidade são perceptíveis, uma vez que o poeta escreve da forma como seu povo fala. E mais uma vez ele deixa claro seu orgulho de ser goiano e “ter o pé rachado”. Ser filho de vaqueiro é motivo de orgulho, atribui a Deus seu dom de cantar a beleza, mais uma vez, de seu “torrão”. Em relação à oralidade fica claro em palavras como: “imbira” (referente à embira, árvore que fornece fibra e madeira), “currá” (no lugar de curral, lugar onde fica o gado), “campulino” (raça de cavalo), “catarrento” (menino cuja secreção das narinas escorre pelo rosto), “rajado” (no texto faz referencia a sujo) e “suspirano” (suspirando, do verbo suspirar), termos que se desvinculam das formalidades da língua, mas que denotam facilmente o entendimento da ideia e não prejudicam a comunicação. Contrariando as formalidades linguísticas o poeta deixa o eu-lírico evidenciar sua “identidade” por meio de expressões e formas verbais típicas do lugar.
O orgulho de ser goiano é também uma marca constante. Ele nos faz lembrar, como já foi dito, a outra autora goiana que não esconde o prazer em ser desta terra abençoada, Cora Coralina. Em sua produção poética Joãozinho Beltrão mostra, além do amor por seu estado a sua percepção dos problemas políticos, sociais e, quiçá, existências. Deixa claro que o poeta não pode se ligar somente aos preceitos metafísicos ou a um eruditismo descontextualizado.
Em “Chão de poesia”, poema que dá nome à obra, mais uma vez é possível comprovar a relação de amor do poeta por sua terra natal, o chão de sua poesia:
Vielas estreitas da minha terra,
Ruas descalças e calmas…
Ruas de terra batida,
Onde passeiam meninos barrigudos.
Onde trafegam jumentos,
Cansados de transportar,
Bruacas e feixes de lenha de timbó…
Vielas que já viram passar
Filões com suas folias,
Fiéis com suas procissões. (FILHO, 1982, p. 132)
Neste trecho percebemos a descrição de algumas imagens do cotidiano da cidade de Campos Belos. Há ainda nos primeiros versos a representação geográfica da cidade e das fisionomias das crianças. Os versos finais destacam as marcas da tradição oral, ao lembrar das procissões. Tal proposição é endossada nos trechos seguintes transcritos a seguir:
Andores transportando a imagem,
Da Virgem Santa Imaculada Conceição…
Vielas da minha terra,
Que conheço cada palmo,
Onde passo e me encontro
Sentindo o cheiro do arroz com pequi,
Que exala das panelas,
Das humildes, mas aconchegantes,
Casas de adobes e telhas coloniais…
Ruas de Campos Belos,
Onde passam moças belas,
Trajando vestidos de seda,
Mostrando as roliças coxas… (FILHO, 1982, p. 132)
O relato de uma das cenas da procissão da Virgem pelas vielas da cidade dá o tom da narrativa oral da autonomia e da subjetividade do autor. Tais estruturas orais são confirmadas nos versos subsequentes, à medida que vai sendo inserida a lembrança de um dos pratos mais consumidos na cidade e em todo estado de Goiás: o arroz com pequi. Há ainda a descrição do patrimônio histórico da cidade, cuja ressalva do poeta nos faz lembrar que atualmente existem pouquíssimas casas coloniais na cidade.
Nos versos finais do poema, a declaração arrebatadora:
Ruas estreitas e desconformes,
Ruas da minha terra,
Minhas ruas, meus amores,
Meu torrão, meu chão de poesia… (FILHO, 1982, p. 132-133).
Diante destas análises, podemos compreender que a arte pode ser evidenciada em todos os lugares. A poesia de João Beltrão Filho é um exemplo interessante disso. Ele não nega a sua condição existencial e cultural, ao contrário, faz do seu lugar a fonte de inspiração para sua arte, para isso o poeta imortaliza as pessoas que julga importante, além de secularizar as sensações manifestas e de inferir valor a tudo aquilo que emana de seu povo.

¹ Graduada em Letras pela Universidade Estadual de Goiás, UnU Campos Belos e professora da rede estadual.
² Professora na Universidade Estadual de Goiás, UnU Campos Belos e aluna do mestrado em Letras da Universidade Federal de Goiás (UFG).

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