A FORÇA DO POVO NEGRO – Escola quilombola recria jogo de xadrez com personagens históricos para valorizar a ancestralidade.
Jogo é adaptado para contar a história dos quilombos em Goiás, trazendo protagonismo e conexão cultural aos estudantes de classe multisseriada da Escola Municipal Canabrava.
Por Gisele Andrade da Silva / Luiz Carlos Silva Junior**
Nasci, cresci e moro na Comunidade Quilombola Canabrava, no município de Flores de Goiás (GO). Por aqui, vivem cerca de 450 pessoas. Goiânia, capital do estado, fica a 473 km de distância. Há 11 anos, quando decidi me tornar professora, assumi o compromisso de levar à sala de aula a valorização da nossa comunidade, as riquezas e as conquistas dos nossos ancestrais. Assim nasceu o projeto “Xadrez quilombola”, com a turma do 8º e 9º anos em uma classe multisseriada da Escola Municipal Canabrava.
Mas há um caminho que precisa ser contado até o jogo chegar à escola. Atualmente, sou mediadora do Goiás Tec na escola, um projeto do governo estadual que leva tecnologia e aulas gravadas de diferentes disciplinas à zona rural, distritos e regiões afastadas dos centros urbanos.
Durante uma formação presencial do programa, conheci Luiz Carlos Silva Junior, professor de biologia e educação física, que desenvolveu um jogo de xadrez para ser adaptado em contextos sociais, mas que ainda não havia sido colocado em prática.
Onde tudo começou
Luiz teve a ideia depois de duas viagens por Goiás. Uma delas na comunidade quilombola do Território Kalunga, da região de Cavalcante, considerado o primeiro território no Brasil conservado pela comunidade. Ele também visitou a Aldeia Tapuias, em Rubiataba. O contato com essas culturas o fez refletir sobre como transformar jogos educativos pré-estabelecidos para que dialogassem com a realidade dos estudantes.
Há bastante tempo Luiz pesquisa sobre o tema, e o levou, inclusive, ao mestrado. Um dos primeiros resultados foi um tabuleiro que ele mesmo aplicou para ensinar botânica aos seus alunos.
Com a nossa conversa, unimos a experiência do Luiz em jogos educativos com a minha vontade de ensinar a história do Quilombo de Palmares, o maior da América Latina e símbolo de resistência dos escravizados, por meio do xadrez. Vale lembrar que foi no mesmo território, em meados dos anos 1600, que se constituiu o Quilombo Flores Velhas, em Flores de Goiás, abrigando famílias escravizadas e indígenas – onde hoje fica a minha comunidade quilombola.
O professor Luiz me mostrou que o xadrez pode ser usado como suporte pedagógico em vários componentes curriculares, como matemática, artes, história, geografia e educação física. De volta à comunidade, conversei com o diretor da Escola Municipal Canabrava, e prontamente abraçamos a ideia.
Vídeo mostra o desenvolvimento do jogo de xadrez com personagens históricos.
Apoio da comunidade
O primeiro passo foi apresentar a proposta à turma multisseriada do 8º e 9º anos: três estudantes (Bruna da Silva Lima, Júlia Lopes da Cunha e Vitor Hugo Rodrigues Cunha) ficaram à frente do projeto, responsáveis por apresentar o jogo aos demais. Criamos oficinas, reforçando que as regras do xadrez tradicional não mudariam.
O xadrez é um jogo entre dois adversários de lados opostos de um tabuleiro contendo 64 casas de cores alternadas. Cada jogador tem 16 peças: um rei, uma dama, duas torres, dois bispos, dois cavalos e oito peões. O objetivo do jogo é dar xeque-mate no rei adversário, ou seja, colocá-lo em uma posição onde ele não possa escapar da captura.
A aplicação do xadrez na educação, a partir da ideia do professor Luiz e com base no currículo de Goiás e na BNCC (Base Nacional Comum Curricular), visa vivenciar, apropriar e analisar características histórico-culturais.
As diretrizes curriculares do estado de Goiás foram elaboradas a partir da BNCC. Especificamente na disciplina de educação física, que o professor Luiz também ministra, a proposta pedagógica da instituição escolar deve abordar os jogos e brincadeiras como prática contextualizada, presentes na memória dos povos indígenas e das comunidades tradicionais quilombolas.
Também vale lembrar que a BNCC contextualiza a aplicação dos conhecimentos na realidade, destacando a importância de dar sentido ao que se aprende e o protagonismo do estudante, tanto em sua aprendizagem quanto na construção de seu projeto de vida.
Xadrez quilombola
O objetivo não era apenas seguir as orientações curriculares, mas ressignificar o xadrez com personagens do Quilombo de Palmares, envolvendo a comunidade e os estudantes.
Depois das aulas de história sobre Palmares, separamos os principais personagens históricos para criar as peças do “Xadrez quilombola”:
– Os peões foram substituídos pelos escravizados e escravizadas, fazendo um resgate histórico da luta pela liberdade.
– O rei foi substituído por Ganga Zumba, o primeiro rei do Quilombo dos Palmares.
– O bispo foi representado pelo Zumbi dos Palmares (sobrinho de Ganga Zumba), o último dos líderes do Quilombo dos Palmares.
– Dandara, guerreira negra que dominava técnicas de capoeira e lutava ao lado de homens e mulheres nos ataques ao quilombo, foi a rainha. Esposa de Zumbi, ela liderou tropas contra os portugueses.
– O cavalo foi representado por D. Pedro de Almeida Conde de Assumar, governador das capitanias de São Paulo e Minas do Ouro.
– A torre foi representada por Domingos Jorge Velho, bandeirante paulista, caçador de indígenas e de escravizados fugitivos, que liderou as tropas que destruíram o Quilombo dos Palmares.
Sobre os dois últimos personagens: escolhemos D. Pedro de Almeida, Conde de Assumar, e Domingos Jorge Velho, porque representam a violência e os maus-tratos ao povo negro no período de Palmares. Infelizmente, eles fazem parte da história do quilombo e, por isso, nossa comunidade decidiu que eles não poderiam ficar de fora do jogo. Sua truculência não pode ser esquecida. Como se trata de um jogo ressignificado, a ideia aqui não foi destacar o poder do escravizador, tampouco compará-lo ao povo negro. No Xadrez Quilombola, nosso objetivo é retratar os personagens que fizeram parte do contexto histórico, para que possamos reforçar, em nossas aulas, tanto a força do povo negro quanto os abusos cometidos por esses senhores contra os escravizados.
Levamos as imagens dos personagens para a confeccionista da cidade, Eva Rodrigues de Sousa, e para a costureira Juraci Gomes de Sousa. Elas criaram os figurinos com tecidos, e os adereços com sementes e materiais recicláveis, além de montarem um grande tapete, que serviu como tabuleiro. A base das peças foi feita com jatobá, e as roupas customizadas eram pretas e brancas, representando as cores das peças de um xadrez comum. Os acessórios vieram dos materiais recicláveis e das sementes.
Dessa maneira, também trabalhamos a disciplina de educação artística com os alunos durante a pesquisa, desenho e confecção das peças. Em matemática, abordamos todos os desafios do xadrez no que se refere ao desenvolvimento do raciocínio, noções de troca, valor comparado das peças, controle de casas e cálculo do índice de desempenho dos jogadores.
O jogo fica disponível na escola, para o uso de outros professores e alunos. Nossa missão, minha e de Luiz, é incentivar outras escolas a adotarem o xadrez em seus projetos pedagógicos – e que também o utilizem para fazer o resgate histórico de suas comunidades.
Para reproduzir o xadrez de forma ressignificada na sua escola e comunidade, você deve:
– Identificar na comunidade personagens importantes e marcantes.
– Estabelecer as funções de cada personagem e sua relação histórica e cultural.
– Apresentar para os estudantes um tabuleiro de xadrez, suas peças e mostrar as movimentações básicas.
– Sugerir que os estudantes identifiquem na sua comunidade quais personagens poderiam ser as peças de xadrez: rei, rainha, bispo, cavalo, torre e peões.
– Fazer uma pesquisa histórica e documental das pessoas envolvidas no processo de construção da comunidade e sua importância.
– Apresentar materiais que podem ser reaproveitados ou reutilizados para fabricação dos personagens de forma artesanal.
– Reutilizar tecidos para construir o tabuleiro.
– Envolver a comunidade escolar na produção do xadrez.
– Utilizar sementes, cascas, pedaços de madeira, garrafas PET, tampinhas e outros materiais que possam ser reaproveitados para confecção dos personagens.
– Os estudantes deverão ser protagonistas no processo de construção de cada etapa do produto educacional.
Sempre com a orientação do professor, os estudantes adaptam e melhoram tamanhos, formatos e modelos que vão sendo construídos. Após finalizadas todas as peças, é preciso testar a aplicabilidade do xadrez junto aos demais estudantes.
Para os povos originários, por exemplo, as escolas indígenas podem representar figuras importantes da comunidade, como o cacique, o pajé, os guerreiros, entre outros.
É importante salientar que toda a produção não deve ser imposta, mas sim voluntária e participativa.
***Gisele Andrade da Silva – É graduada em pedagogia e geografia, com pós-graduação em alfabetização e letramento, além de Fundamentos para o Ensino de história e geografia. Funcionária efetiva da Prefeitura Municipal de Flores de Goiás desde 2011, atualmente atua como professora mediadora no Programa Goiás TEC. Desenvolve projetos culturais escolares focados na valorização da cultura local e regional, promovendo o resgate dos costumes e tradições quilombolas, garantindo sua transmissão de geração em geração.
****Luiz Carlos Silva Junior – Graduado em biologia (Licenciatura e Bacharelado) pela PUC-GO, com pós-graduação em formação de professores pela mesma instituição. Também possui pós-graduação em métodos e técnicas de ensino pela UNIVERSO e licenciatura em educação física pelo Centro Claretiano. Atualmente, é professor de biologia e educação física na SEDUC-GO (Secretaria Estadual de Educação de Goiás) e professor de educação física na PUC-GO. É mestre em ensino para a educação básica pelo IFGoiano.
FONTE: https://porvir.org/