CASO BOLSA FAMÍLIA: O assistencialismo e a economia política da pobreza

Por Vagner da Silva Cunha*

Entre os dias 18 e 19 de maio último, camadas populares de diversas cidades brasileiras foram surpreendidas com a propagação de um boato de que o Bolsa Família, principal programa de transferência direta de renda do governo federal, seria suspenso. Com a notícia espalhando-se rapidamente por vários estados do Brasil, sobretudo nas regiões Sudeste, Norte e Nordeste, populações locais prontamente acorreram às casas lotéricas e agências da Caixa Econômica Federal para sacarem os valores relativos ao benefício, o que, em alguns casos, gerou tumulto, revolta e depredações. Em poucos dias, conforme divulgou a Caixa Econômica, foram sacados das agências cerca de R$152 milhões, ao passo que, em decorrência da comoção social provocada, alguns pagamentos foram adiantados, não obstante a existência de calendário próprio.
Com a ampla divulgação acerca dos fatos em diferentes mídias, e no intuito de apaziguar os ânimos, na segunda-feira (20/5), a presidenta Dilma Rousseff, em pronunciamento oficial em sua passagem por Ipojuca, região metropolitana de Recife, tratou de desmentir os rumores, inclusive afirmando que a autoria dos mesmos seria objeto de investigação da polícia federal por tratar-se de ato “desumano” e “criminoso”, ao passo que sugeria motivação política e ação leviana da oposição visando a desestabilizar seu governo. Segundo suas palavras, os recursos destinados a tal programa são “sagrados” e “serão garantidos sempre, enquanto for necessário”, reafirmando o compromisso “forte, profundo e definitivo” de sua gestão para com a manutenção do mesmo. Como se sabe, o Programa Bolsa Família, prestes a completar dez anos de existência, atualmente contempla cerca de 36 milhões de pessoas, sendo um dos principais símbolos dos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.

Instrumentalização eleitoreira
Guardadas as devidas diferenças conjunturais, é interessante notar que, ao longo da história, várias foram as manifestações de revolta popular frente a ameaças – concretas ou imaginárias – de restrições acerca do que se convencionou como direitos tradicionais e benesses costumeiras. Na França e Inglaterra dos séculos 17 e 18, por exemplo, foram muito comuns os chamados food riots e tax rebellions,geralmente conhecidos como “os motins da fome”, rebeliões relativas ao aumento (ou boatos de aumento) injustificado e abusivo de preços e/ou impostos. Comumente, sob o lema “Viva o Rei e morte ao mau governo!”, ou ainda “Viva o Rei e morram os traidores!”, tais movimentos caracterizavam-se, sobretudo, por seus aspectos apenas reativos, uma vez que o objetivo central era o retorno a uma situação anterior de equilíbrio social e apaziguamento dos conflitos.
De modo semelhante, nas famosas revoltas camponesas ocorridas na França no início do século 18, a divulgação e propagação dos boatos também assumiu um papel preponderante, difundindo ondas de pânico, terror e medo entre as populações citadinas. Em suma, em tais manifestações de revolta popular a ordem estabelecida não era questionada, mantendo-se, portanto, o status quo. De fato, o próprio conceito de “revolução” genuinamente empregado nestes contextos, muito inspirado em pressupostos astronômicos, guardava um significado absolutamente conservador, de retorno a uma situação precedente, situação que prevaleceu até a ascensão dos jacobinos franceses ao poder em 1791.
De volta ao contexto brasileiro, e polêmicas à parte, acreditamos ser bastante válido o exercício de dissociação entre políticas afirmativas, assunto tão em voga, e o mero assistencialismo. Não obstante as divergências existentes, observa-se que há relativo consenso entre os ativistas defensores das políticas afirmativas no que se refere a seu caráter eminentemente emergencial e imediatista, não excluindo, portanto, a necessidade de ações governamentais e sociais de maior envergadura a fim de sanar as graves defasagens histórica e politicamente constituídas. Nessa perspectiva, ao tornar-se o estandarte das políticas de Estado, um dado programa, isoladamente, corre o risco de transmutar-se em simples assistencialismo, gerando uma nefasta instrumentalização eleitoreira, sobretudo em países de fértil e arraigado passado caudilhesco e populista.

Ação afirmativa não assistencialista
Obviamente, aspectos positivos de tais políticas, como o combate à fome e à miséria extrema, assim como a redistribuição de renda ou mesmo o aquecimento da economia interna, não podem ser desprezados e negligenciados; contudo, “se quem tem fome tem pressa” – como reiteradas vezes afirmou o governo Lula – não é de bom tom esperar a fome bater à porta a cada dia, sob o risco de se criar uma verdadeira “economia política da pobreza”, subvertendo os princípios éticos e humanitários que, em tese, deveriam nortear tais políticas. Nessa vertente, e sobretudo em períodos eleitorais, são inclusive elucidativas as disputas travadas entre partidos de orientação ideológica diversa acerca da “paternidade” de tais programas, dadas as suas repercussões e abrangência social.
À guisa de conclusão, por fim, acreditamos que somente quando tais políticas forem de fato enquadradas na perspectiva mais abrangente da ação afirmativa – e não assistencialista – é que alterações, ou mesmo a supressão do Programa Bolsa Família, por fazer-se desnecessário, entrarão no horizonte de possibilidades, superando a acepção setecentista conservadora do termo “revolução” para um entendimento mais contemporâneo, de mudança. FONTE – (Observatório da Imprensa – edição 748)

*Vagner da Silva Cunha é historiador.

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