MORTOS NÃO FALAM – Após ordem de juiz, oficial de justiça vai a cemitério tentar intimar morto em assalto: ‘chamado pelo nome duas ou três vezes’.
Nos documentos do processo há um mandado para que a vítima de latrocínio fosse intimada. No documento feito pelo oficial de justiça ele diz que foi ao endereço recebeu a informação de que a pessoa a ser intimada ‘reside no cemitério’.
Por Patricia Lauris e Vilma Nascimento**
Imagine a situação: um juiz dá a seguinte ordem em uma sentença de condenação de um crime de latrocínio (roubo seguido de morte): “Intime-se a vítima, caso houver”. O oficial de justiça, em cumprimento, vai até o local onde intimado ‘mora’ atualmente: o cemitério. Chama pelo nome e, sem resposta, confirma o que parecia óbvio: a vítima estava morta.
Parece piada, mas esse cenário aconteceu no Judiciário Tocantinense neste mês. O caso envolve o juiz Baldur Rocha Giovannini e o oficial de justiça Cácio Antônio. Os documentos foram encontrados pelo jornalista do Jornal do Tocantins, Lailton Costa.
O latrocínio em questão foi registrado no dia 29 de abril de 2022, por volta das 22h, em Dueré, no sul do Tocantins. Francisco de Assis Sousa, estava em casa quando dois homens invadiram o local com uma faca e o mataram para roubar um celular, uma televisão, uma moto e R$ 900 em dinheiro.
Passado um ano e cinco meses do crime, um dos réus foi condenado, e nessa sentença, da 1ª Vara Criminal de Gurupi, está a ordem para intimação da vítima. No documento, assinado pelo juiz Baldur Rocha Giovannini, há o seguinte texto:
“Intime-se pessoalmente a vítima, e caso este seja falecida, intime-se o CADE (cônjuge, ascendente, descendente ou irmão) para que, querendo, execute perante o Juízo Cível, o dispositivo da sentença que condenou o acusado ao pagamento da indenização mínima, no valor de 100 (cem) salários mínimos. Intime-se a vítima (caso houver) da referida sentença, por força do art. 201, §2º, do CPP.”
Chamado no cemitério
Logo após o resultado do julgamento que condenou o réu a 21 anos de prisão, no dia 26 de setembro, foi assinado eletronicamente um mandado para cumprimento da intimação em nome da vítima, conforme mostra o texto:
“[…] Juiz de Direito Titular da 1ª Vara Criminal da Comarca de Gurupi/TO, no uso de suas atribuições legais, MANDA ao Oficial de Justiça ou a quem este for distribuído, que proceda à: INTIMAÇÃO da vítima FRANCISCO DE ASSIS SOUSA, brasileiro, solteiro, nascido aos 08/08/1954, natural de Grajaú-MA […]. FINALIDADE: Intimar do inteiro teor da sentença […]”
No dia 4 de outubro, a Central de Mandados de Gurupi emitiu a curiosa certidão atestando que o oficial de justiça Cácio Antônio foi ao endereço da vítima, em Dueré. Chegando lá, conforme o documento, o servidor afirma que recebeu a informação de que a vítima ‘reside’ no cemitério local’.
O oficial de justiça relatou então que foi ao cemitério, chamou duas ou três vezes pelo nome e até pelo apelido da vítima. Ao fim, confirmou o esperado: ‘que o intimando encontra-se mesmo “morto”‘. Por esse fato, deixou de proceder a intimação. (Veja no documento abaixo)
O que diz o Tribunal de Justiça
Em nota, o Tribunal de Justiça informou que de acordo com o juiz, ‘não foi expedido nenhum mandado de intimação para pessoa morta’ e que ‘a atitude do oficial de justiça deverá ser apurada por órgão competente’. Porém há o pedido na decisão e um mandado expedido para o cumprimento da intimação da vítima. (Veja na imagem abaixo)
O g1 entrou em contato com o Sindicato dos Oficiais de Justiça do Tocantins, mas não obteve posicionamento até o fechamento desta reportagem.
O oficial Cácio Antônio também foi procurado pela reportagem para dar a versão do ocorrido. Respondeu apenas que “falará em momento oportuno”.
No mesmo dia em que o Tribunal de Justiça enviou a nota à imprensa, um novo documento do juiz Baldur foi incluído no processo determinando que a Corregedoria e a Diretoria local do Fórum sejam oficiadas para investigar a conduta do oficial de justiça. Um dos pontos do documento cita que a certidão gerou desconforto e qual seria a conduta correta do oficial de justiça:
Considerando a certidão do Oficial de Justiça acostado ao evento 88;
Considerando que a sentença acostada ao evento 84 foi explícita em determinar a intimação da vítima, se houvesse, ou o CADE (cônjuge, ascendente, descendente ou irmão) para que, querendo, execute perante o Juízo Cível, o dispositivo da sentença que condenou o acusado ao pagamento da indenização mínima;
Considerando que não tem nenhuma decisão para o oficial de justiça intimar ninguém morto em cemitério e que isto não é de praxe no Judiciário;
Considerando a ampla divulgação da referida certidão, que trouxe claro desconforto para este juízo;
Considerando ainda que a conduta correta seria de, no máximo, ter ido ao cartório e ter pegado segunda via da certidão de óbito e no mínimo intimar o CADE (cônjuge, ascendente, descendente ou irmão, conforme determinado;
O oficial também foi questionado pela reportagem sobre o pedido de apuração da conduta na Corregedoria, mas não se posicionou.
Salário
Levantamento feito pelo g1 no portal da transparência do Tribunal de Justiça mostra o rendimento de ambos, que chegam a ganhar bem mais que o próprio governador do estado. O juiz Baldur Rocha Giovannini e o oficial de justiça Cácio Antônio de Oliveira têm remuneração bruta de mais de R$ 40 mil por mês, cada um.
Baldur Rocha Giovannini é juiz desde 2009 e atualmente está lotado na 1ª Vara Criminal da comarca de Gurupi, que possui status de 3ª entrância – as comarcas são divididas em três entrâncias e quanto maior o grau, maior é a remuneração. O salário base dele é de R$ 35.710,46.
Rendimentos brutos de Baldur Rocha Giovannini nos três últimos meses:
Julho: R$ 47.529,67
Agosto: R$ 50.325,23
Setembro: R$ 46.686,72
O oficial de Justiça Cácio Antônio de Oliveira ocupa o cargo desde 2002 e atualmente está lotado na mesma comarca que o juiz, mas na central de mandados. O subsídio base dele é de R$ 36.629,76.
Rendimentos brutos de Cácio Antônio de Oliveira nos três últimos meses:
Julho: R$ 40.962,33
Agosto: R$ 40.962,33
Setembro: R$ 40.962,33
Além dos descontos com Imposto de Renda e contribuição previdenciária, entre outros, os dois tem redução do salário pelo teto constitucional.
***FONTE: g1 Tocantins