Literatura & Direitos Sociais: A literatura enquanto território santo em Cartas entre amigos, de Fábio de Melo e Gabriel Chalita

Larissa Cardoso Beltrão – laricinhabeltrao@hotmail.com
Sigamos juntos na edificação dessas esperanças. Queiramos sempre a terceira margem, queiramos sempre Pasárgada, a terra prometida, queiramos o Reino dos Céus… É isso. Somente isso. O resto é palavra que ainda não sei dizer. É verso que ainda não sei escrever. É medo que ainda não sei confessar. (MELO, 2009, p.220) 

Larissa Cardoso BELTRÃO (Prof.ª Mnda./UEG) / Andra Martins RIBEIRO (Profª Esp./FCB)

 

Sob a metáfora da mesa posta, padre Fábio de melo e Gabriel Chalita em Cartas entre amigos sobre medos contemporâneos e, posteriormente, em Cartas entre amigos sobre ganhar e perder tratam de assuntos que alcançam os recônditos da alma humana. Através de uma literatura de caráter redentor, em um mundo marcado pelo capitalismo exacerbado, eles buscam redimir o leitor, estimulando-o a reconhecer o sagrado nos pequenos detalhes e gestos de forma a fomentar a vivência da sacralidade de cada dia. Assim, em meio ao caos do mundo moderno, somos, enquanto leitores, encorajados a viver o rito, mesmo sabendo que o mundo pede pressa.
O itinerário de Pasárgada, o lugar ideal criado por Manuel Bandeira, a terceira margem insistentemente buscada, no conto homônimo, por Guimarães Rosa são para os nossos dias o que a terra prometida seria para Moisés, a possibilidade de uma vida melhor. Antônio Cândido (2000), em Literatura e sociedade, afirma que os fatores sociais exercem influência concreta na manifestação artística, pois ao analisarmos a arte, enquanto um sistema simbólico de comunicação inter-humana, podemos verificar a existência de uma relação pertinente entre artista, obra e público.
Nesse sentido, a literatura, quando abordada em sua função humanizadora e social, coloca o escritor em um lugar bastante privilegiado no mundo contemporâneo: no seu tempo. O engajamento e a responsabilidade desses artistas, nesse caso, garantem ao leitor um mergulho metafórico no universo da linguagem humana, na realidade e no processo ritual que a envolvem. Considerando, pois, que a análise de uma obra literária pode nos possibilitar uma leitura do aspecto social de uma determinada época e/ou sociedade podemos nos reconhecer ao longo dos relatos apresentados ao longo das cartas, uma vez que estes escritores são parte da sociedade contemporânea com seus medos, suas vitórias e derrotas.
Diante do cenário contemporâneo, em meio ao caos provocado pelo advento da modernidade, as relações humanas tornam-se, temáticas universais e o escritor contemporâneo, por sua vez, ganha cada vez mais status de artista também universal. Em uma espécie de tratado epistolar contemporâneo, Fábio de Melo, sacerdote da Igreja Católica Apostólica Romana, e Gabriel Chalita, político renomado, advogado, jurista e escritor, põem-se, através de um meio de comunicação que a sociedade moderna considera ultrapassado a, de forma irônica, unir passado e presente, visto que abandonam o novo, o correio eletrônico e suas possibilidades instantâneas, e mergulham no passado e suas exigências no trato com a palavra.
O uso da forma tradicional de diálogo, de trocas de informações adotadas pela sociedade por séculos e abandonada nessas últimas décadas, se configura como uma referência crítica a forma curta, rápida e direta que a substituiu e que está presente na sociedade contemporânea – o e-mail. O universo criado por Pe. Fábio de Melo é demarcado pela reflexão e introspecção. Em suas cartas o processo artesanal remete-nos ao processo que o trato com as palavras exige, como Drummond convida-nos a fazer em seus versos, “convive com teu poema antes de escrevê-lo”. Nessa perspectiva Fábio de Melo e Chalita celebram, juntos, muitas eucaristias, são banquetes onde a palavra mostra seu poder e surge como meio de redenção. O diálogo é tecido através de um recurso singular construído pelos escritores. Através de uma relação íntima e confidente o leitor é o terceiro convidado para o banquete.
Ao longo de seus escritos, o padre Fábio de Melo procura retratar o ser humano e seus medos, para tanto coloca-se como homem do seu tempo e canta, em seus versos, mais uma vez sob a perspectiva drummondiana o homem do tempo presente. Ao apresentar-se como sacerdote, o padre é colocado na condição privilegiada de penetrar os bastidores da humanidade, lugar do qual tem acesso aos medos, anseios e desejos do homem contemporâneo.
A realidade é abrangente e as situações são as mais diversas e, desse modo, a partir do signo da solidão, de modo especial, o padre Fábio de Melo sugere uma aguda reflexão sobre a condição do estar só em meio à multidão. E diferentemente do Flaneur, de Baudelaire que flana e observa, enquanto padre ele é chamado a ouvir, e por meio da palavra, ele tem a possibilidade de redimir e povoar de esperança os rejeitados pela sociedade que, camuflada com ideais de perfeição, mostra-se preparada para cultuar somente o belo, advindo de um ideário preestabelecido pela própria sociedade. Mesmo na solidão, os rejeitados podem, segundo Chalita, povoar os velhos sobrados com novas tentativas, novos caminhos e, assim, redescobrir-se enquanto pessoa humana.
A partir da denominação fast do food termo, como outros tantos, herdado da cultura norte americana, Fábio de Melo coloca-nos diante de uma geração que não sabe esperar, jovens que brincam de tudo, inclusive de serem pais. A infância, por sua vez, perde a conotação de outrora. Vemos crianças robóticas e pais enfeando o estágio de vida com cobranças e exigências que perpassam o sentido de ser verdadeiramente criança. Das relações iniciadas instantaneamente, nascem os filhos de ninguém, os jovens fabricados nas baladas. Muitas fábricas produzem jovens sem a capacidade de vencer o medo. Estes se escondem nos velhos sobrados, param no meio do caminho e perdem a oportunidade de atravessar:

Outro dia assisti a um noticiário que mostrava um final de festa na cidade de São Paulo. O sol já havia nascido e um grupo de rapazes e moças se amontoava numa calçada imunda. Dividiam uma porção de cocaína sem nenhum receio de serem abordados por alguma autoridade policial. As imagens eram cruéis. Era possível perceber que todos eles já estavam abatidos e cansados. As expressões faciais denunciavam uma espécie de desprezo pela vida, pelo mundo. O repórter fez um único comentário: ‘É lamentável que este é o café da manhã dessas pessoas!’. (MELO, 2009, p. 181).

A situação é apresentada por meio de uma cena plástica. Os filhos das ficadas estão jogados nas calçadas. Essa é apenas a parte visível da cena, por trás da cocaína: as brigas em casa, a falta de dinheiro, o abando dos pais, os abusos sexuais sofridos, o mundo da bebida e, por fim, as drogas. Os jovens da calçada são filhos de ninguém e, portanto, é normal que tomem cocaína no café. O comentário é certeiro, a cena é, de fato, lamentável. Mas e nós? Qual a nossa reação diante de uma cena como essa? Medo! Temos medo de que sejam selvagens, que nos roubem, levem nossas bolsas, as chaves do carro.
Padre Fábio e Gabriel Chalita colocam-nos diante de um grande desafio: atravessar o deserto dos nossos medos. Para tanto é preciso que as relações humanas sejam mais artesanais: o banquete necessita de tempo para ser preparado. Em Cartas entre amigos é perceptível o desejo dos autores em manifestarem-se enquanto seres contemporâneos, mas ainda assim, não contentarem com a hipocrisia advinda do progresso e da modernidade. A literatura cumpre sua função humanizadora, vez que se mostra engajada nas questões sociais, faz-nos refletir sobre os anseios, medos e desejos humanos e, principalmente, se postula enquanto território santo, logo, luta para aperfeiçoar a condição do ser humano no mundo contemporâneo.
REFERÊNCIAS:
1. Corpus para análise:
MELO, Fábio de; CHALITA, Gabriel. Cartas entre amigos: sobre medos contemporâneos. São Paulo: Ediouro, 2009.
2. Obras de apoio teórico-crítico:
ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica. Trad. Jaime Bruna. 4 ed. São Paulo: Cultrix, 1990.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: TA Queiroz: 2000.
COUTINHO, Afrânio (dir.); COUTINHO, Eduardo de Faria (co-dir.). A Literatura no Brasil; introdução. São Paulo: Editora Global, 2004.
9
MOISÉS, Massaud. Dicionários de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1974.

 

 

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