Artigo/MÍDIA & PODER: Moral pública virou farelo

Rosemary Nóvoa de Noronha

Lúcio Flávio Pinto*

Confesso o estupor que senti quando vi na tela do aparelho de televisão aquela entrevista do então presidente Lula a uma jornalista desconhecida em Paris. Tudo ali estava errado. Por que tratar de um grave tema nacional na capital dos franceses?
Lula dispunha de pelo menos um antecedente mais ou menos recente. O prussiano general Ernesto Geisel, que também foi presidente da república, tratou de candentes questões brasileiras num trem-bala no Japão, quase 40 anos atrás. Só que ele foi surpreendido pela curiosidade dos jornalistas que integravam sua comitiva. Não podendo ignorar aquelas perguntas em terra estrangeira, o general conversou com os repórteres. E nunca mais na viagem.
O episódio de Lula em Paris foi diferente. A entrevista foi de caso pensado e situação arranjada. A ilustre e desconhecida jornalista foi contratada para perguntar o que lhe foi soprado pelos companheiros. Era perguntar e segurar o microfone para a resposta. Sem direito a réplica.
Recebendo de súbito aquela entrevista pela TV, sem qualquer aviso prévio, o choque me provocou inúmeras associações de ideias e imagens. Parecia uma encenação de apparatchick para que o grande chefe se pronunciasse sem o risco de alguma surpresa. E para mandar um recado. A situação era inverossímil, de arrepiar qualquer profissional de marketing e relações públicas. Ainda mais um jornalista.

DNA do nepotismo
O recado foi dado. Toda a barulheira em torno do escândalo do mensalão era fogo de artifício. Os petistas nada mais tinham feito do que repetir a conduta de todos os partidos políticos ao longo da história brasileira: usaram dinheiro do caixa 2. Caixa ilícito, sim, mas que se tornou figura constante nos hábitos e costumes nacionais. Quase se poderia dizer: um instituto do direito consuetudinário marginal.
Lula tem sagacidade suficiente para ter sido o autor do argumento. O mais provável, porém, é que ele tenha recebido o texto pronto de um desses juristas de notável saber, como Márcio Thomaz Bastos, seu atento e profícuo ministro da justiça. Dito com a empatia e o carisma do grande líder, não soaria como recurso de defesa criminal.
Não naquela época. Mas quando a mesma coisa foi repetida durante as sessões do Supremo Tribunal Federal para o julgamento do mensalão, que finalmente chegaram ao fim, o estupor foi ainda maior. Aprendemos com nossos maiores que não há meia corrupção, como, na versão mais libidinosa (no sentido freudiano, é claro), não existe meia virgindade. Roubar um tostão ou um milhão dá na mesma. Quem tira hoje um tostão pode abocanhar amanhã um milhão. Afinal, o hábito faz o monge.
O PT, o partido escolhido, que se considera ungido pela deusa da pureza absoluta, relativizou a corrupção. É a tese de defesa montada em torno de Rosemary Nóvoa de Noronha, a amiguinha do presidente Lula, que fazia e acontecia a partir do gabinete da presidência da república em São Paulo. Porta-vozes do partido dizem que Rose não passa de uma “petequeira”, neologismo cunhado pelo célebre autor de expressões a serem reunidas num futuro dicionário da corrupção no Brasil, o ex-deputado federal Roberto Jefferson, que tirou o mensalão da caixa preta, com a autoridade de personagem principal.
O “alcance” (na linguagem contábil) causado pela secretária foi pequeno. Até agora, realmente foi, ao menos pelo padrão do corruptômetro nacional, de causar inveja em paraísos fiscais ou financeiros. Muita coisa pode ainda estar debaixo dos tapetes ou nos armários. No entanto, se a moral anterior ainda estivesse vigente, petequeira, milongueira ou estradeira, dona Rose praticou corrupção ponto. Corrupção é crime. E crime tem que ser punido.
A atenuação petista carecerá de qualquer condescendência se a rede formada por Rose não for apenas para empregar parentes ou retribuir favores, traço centenário no nepotismo no Brasil.

Colarinho branco
Outra coisa, de muito maior gravidade, como parece ser, é colocar gente em determinados lugares para cumprir objetivo específico. Como arranjar pareceres jurídicos do governo para sacramentar ilegalidades e ilicitudes em troca de pagamentos indevidos.
Nesse caso, o que a chefe do gabinete de representação da presidência da república comandou em São Paulo foi uma quadrilha, que teve entre seus clientes o perigoso ex-senador Gilberto Miranda. Não satisfeito em ser dono de uma ilha no litoral paulista que não lhe podia pertencer, Miranda, que teve um irmão ladino no comando da Suframa, a superintendência da Zona Franca de Manaus, com extensões pela Sudam, queria agora ter seu próprio porto. Para viabilizá-lo, precisava da aprovação de um parecer que não poderia ser emitido, mas que o seria, por força da força de Rosemary.
O que é apresentado como ladrão de galinha pode se transformar em integrante de uma rede do crime organizado, ainda que de colarinho branco, com acesso às principais antessalas do poder, incluindo também o judiciário. O caso, portanto, muda de figura. E de capitulação penal e cível. Para ser devidamente apurada, com todas as suas consequências, antes que, sem moral, seja sugerido a todos que se locupletem.
*(Reproduzido do Jornal Pessoal nº 527, 2ª quinzena/dezembro 2012; intertítulos do Observatório da Imprensa) – Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]

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