Ferreira Gullar: uma escrita feroz

Larissa Cardoso Beltrão

Larissa Cardoso Beltrão – laricinhabeltrao@hotmail.com

Se algum sentido tem o que escrevo, é dar voz a esse mundo sem voz. Mas não há nenhum mérito nisso. Primeiramente, fugi. Fugi da quitanda, fugi da família, da vida sufocante e pouca. Fugi pela poesia, inventei um mundo feérico e feroz. Um suicídio esplendente: ateei fogo ao verbo, minhas vestes mortais, como se fosse meu corpo. (GULLAR, 1999, p.01)

Com vistas a tratar do lugar da prática literária na sociedade, denominada, contemporânea, nesta coluna, colocaremos em cena algumas explanações e análises sobre a relação entre literatura e sociedade, com enfoque na responsabilidade social do artista e na função social da literatura a partir de escritores que, por alguma razão, consagraram-se representantes de seu tempo e de sua gente. Assim, é importante ressaltar que o espaço Literatura e Direitos Humanos é fruto de um anseio latente de proporcionar ao leitor oportunidades de se reconhecer como matéria de poesia e prosa, na estreita relação entre artista, obra e público, sabiamente sugerida por Antonio Candido.
Para tanto, a cada edição trataremos da relação literatura e sociedade a partir da produção literária de um autor da literatura brasileira que tenha feito, de sua obra, um canal pelo qual ecoou a voz de seu povo. Nesse sentido, podemos dizer, com base nos pressupostos de Merquior (1996), que é exatamente em decorrência do aspecto cognitivo que podemos ver a arte como algo sério, haja vista que a condição cognitiva da arte confere ao artista condições para tratar de assuntos sérios, tornando-se, assim, um instrumento de transformação social. A responsabilidade social do artista, segundo Antônio Cândido (2000), é acentuada à medida que os elementos individuais tomam dimensão social e começam a responder às necessidades coletivas.
Contudo, antes de qualquer coisa, é preciso, pois, que em um mercado de bens simbólicos a literatura de comove ser visto como um direito que não pode ser negado, sob pena de mutilação espiritual. Em seu ensaio denominado O direito à literatura, Antonio Candido (1995) suscita a necessidade de organização da sociedade a fim de que se possa ampliar a fruição da condição literária, enquanto bem humanizador.
A obra literária é, em alguns casos, um reflexo da visão social e política do artista, pois nela está refletida a visão-de-mundo do autor, que emerge a partir de sua ideologia, como podemos verificar no poema “O açúcar”, no qual o poeta coloca em cena os homens de seu tempo, vejamos:

O branco açúcar que adoçará meu café
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre. (GULLAR, 2000, 165)

Nos versos supracitados observamos, pois, que o poeta aparentemente imerso em uma realidade, por ora, distante tem uma súbita tomada de consciência. O poema, em questão, foi publicado em 1975, seus versos representam uma tentativa, por parte do poeta, de expressar sua indignação face à situação socioeconômica do Brasil e do mundo, observemos os versos a seguir:

Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça, água
na pele, flor
que se dissolve na boca. Mas este açúcar
não foi feito por mim.
Este açúcar veio
da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira, dono da mercearia. (GULLAR, 2000, 165).

Verificamos no excerto citado acima uma descrição do modelo de sociedade que se firmava no Brasil considerando, pois, que a revolução Industrial incidiu sobre o comportamento da humanidade de forma avassaladora o poeta continua:

Este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tampouco o fez o dono da usina.
Este açúcar era cana
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.
Em lugares distantes, onde não há hospital
nem escola,
homens que não sabem ler e morrem de fome
aos 27 anos
plantaram e colheram a cana
que viraria açúcar. (GULLAR, 2000, 165)
No fragmento em destaque, não obstante, o poeta nos remete ao processo de coisificação do homem, na medida em que, enquanto leitores, vamos descobrindo que o material que adoça a vida de um pequeno grupo de pessoas mais favorecidas, é fruto da amargura vivenciada por homens que não tem acesso aos bens que Antonio Candido (1995) denominou fundamentais. Ademais, o poeta, a partir das antíteses sugeridas pelo contraste entre branco e escuro, doce e amargo revelam a junção das condições individuais e sociais que pesam sobre a personalidade do poeta e despertam nele o sentimento de responsabilidade pela situação do mundo injusto e desigual,

Em usinas escuras,
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema. (GULLAR, 2000, 165)

Nesse contexto, a condição assumida pelo poeta, ressaltada por Gullar, revela-nos sua inquietude em relação à condição de vida imposta pela nova época. Esse sentimento, manifestado no interior, permite-nos associar a imagem de Gullar à de Baudelaire, haja vista que este foi o primeiro poeta moderno a assumir a condição desestabelecida do poeta, aceitando sua miséria e a sordidez do cenário urbano moderno ora, pois, ele goza de certos privilégios, mas está certo de sua inutilidade. Reconhece que o elevado custo dos gêneros de primeira necessidade, os baixos salários, a pouca oferta de emprego, as doenças e mazelas da época, instauram um sentimento de caos e crise.
De acordo com Merquior (1996, p. 238), ser artista já é uma responsabilidade social, uma vez que, à medida que a sociedade determina seus valores e suscita a necessidade de um gesto político, principalmente quando se trata das sociedades subdesenvolvidas econômica e culturalmente, cabe ao artista a responsabilidade pelo simples fato de fazer arte. Portanto, o artista deveria colaborar na e para a formação de uma sociedade com visão crítica. Para Merquior (1996, p. 238), a função estética da arte encontra-se revestida de uma condição moral capaz de conferir ao ser humano uma visão concreta do mundo, pois a “arte é o retrato natural da existência humana”.
No poema “O açúcar”, observamos, pois, o predomínio de uma vertente social e política que se manifesta explicitamente. Nesse poema, Gullar procura desvelar as ideologias vigentes na sociedade da época e, sobretudo, remete o leitor aos problemas sociais, políticos e econômicos da década de 1970. Desse modo, o poeta, consciente de seu papel e da função social da poesia, reflete sobre o drama do homem moderno e contemporâneo.
Ademais, podemos perceber ainda que o poema em questão testemunha a reação do poeta contra o materialismo humano no mundo moderno, uma vez que é marcado por um realismo social que não se limita ao lirismo da poesia engajada, pois é alimentada pela reflexão introspectiva e manifesta a revolta de Gullar, diante de sua sensação de culpa professada através de seus versos ao confessar que o café degustado nas manhãs, em Ipanema, bairro nobre do Rio, é produzido por seres de vida amarga e dura, homens que aquecem o motor econômico do país e que, em contraposição, não têm o direito de usufruir do fruto de seu trabalho.

REFERÊNCIAS:
CÂNDIDO, Antônio. O direito à Literatura. In:______. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995. p. 169-191.
GULLAR, Ferreira. Toda Poesia. 9ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.
_____. Corpo a corpo com a linguagem. Disponível em: <http://www.fundacaoastrojildo.org.br/index.asp?opcao=mostra_noticia&id=8167. Acessado em: 27 set. 2012.
MERQUIOR, José Guilherme. A responsabilidade social do artista. In: _____. A razão do poema. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p. 237-242.

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